Pesquisar este blog

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Cláudia Silva Ferreira



Jamile Soares[1]

No dia 15 de setembro de 2019 ocorreu no Teatro 1 do Sesc Esplanada de Porto Velho, dentro da programação do Festival Palco Giratório, a apresentação do espetáculo A Mulher Arrastada, projeto idealizado por Diones Camargo, dramaturgo, que soube criar e costurar de forma coerente o texto teatral trazendo o devido incômodo que tal temática deve trazer. Diones teve como parceira  Adriane Mottola, encenadora com mais de trinta anos de carreira e fundadora do grupo UTA - Usina do Trabalho do Ator da Cia Stravaganza (grupo teatral de Porto Alegre).
A Mulher Arrastada, Teatro 1 do Sesc. Foto Raíssa Dourado.

O espetáculo tem como ponto de partida o assassinato de Cláudia Silva Ferreira, mulher negra, moradora do morro da Congonha do Rio de Janeiro, 38 anos e que foi baleada por policiais militares ao sair de casa para comprar pão para os filhos. Após ser baleada, Cláudia foi rapidamente jogada no camburão da viatura policial que partiu acelerado. Durante o caminho a porta do camburão abriu e Cláudia, mesmo presa, foi projetada para fora sendo arrastada por 350 metros, fato que resultou em sua morte.

Logo no início do espetáculo nos deparamos com objetos de cena em cima de dois palcos pequenos, com um carro de polícia de brinquedo, um frigobar com uma cerveja dentro e um homem branco, vestido de policial militar. A disposição espacial não foi muito favorável ao público, que em sua maioria não conseguiu ver o que ocorria na cena. Além disso, várias falas do ator não foram escutadas, devido ao tumulto e também pela falta da devida projeção vocal necessária para o ambiente escolhido.

Quando vou ver a mulher negra em cena? A resposta veio logo em seguida, quando surge a figura de uma mulher negra nos conduzindo para adentrar o universo das que vivem á margem. Logo descobrimos que é Cláudia Silva Ferreira interpretada por
Atriz Celina Alcântara. Foto Raíssa Dourado
Celina Alcântara com uma interpretação forte, necessária para uma história tão impactante. A atriz por vezes utiliza de gritos para expressar a indignação de um corpo assassinado pelas mãos do Estado e que não teve nem seu nome e nem seu corpo respeitado; mulher negra que representa tantas outras que são arrastadas e invisibilizadas pela sociedade.

As vidas da população negra, principalmente periférica, como no caso de Cláudia, são descartáveis aos olhos do Estado, representado no espetáculo por um policial branco que confessa seus atos mas não sabe explicar o motivo de tais atitudes, simplesmente deixa claro que esses fatos acontecem como devem acontecer, é tudo parte da estrutura da sociedade opressora. O policial em questão é interpretado pelo ator Pedro Nambuco, que soube demonstrar através da sua atuação a apatia, descaso e frieza do sistema policial com a população negra.

A sonoplastia é muito bem executada, com músicas que apresentam uma distorção, nos provocando uma sensação de incômodo, algo que a obra artística tem como proposição. Outros elementos, além da sonoplastia, se somam para criar o incômodo no espectador, como o texto teatral, a interpretação cheia de silêncios e gritos, e o cenário, que lembra um matadouro.

A história é apresentada não de forma linear mas fragmentária e usando o corpo de Cláudia como um corpo significante da sociedade em que vivia, como na parte em que atriz fala: “O aparelho reprodutor é a minha sentença”; utiliza também o elemento da repetição, com intensificação das intenções, conforme determinadas falas vão sendo repetidas. O espetáculo trabalha em um crescente chegando a muitos momentos de extrema indignação, um grito característico de um espetáculo manifesto.

A obra artística possui como estética teatral a linguagem do teatro performativo, pois tem como prioridade a apresentação de uma história, de um corpo representativo de vários corpos de mulheres negras. Por mais que a intenção principal seja retratar os últimos momentos de vida de Cláudia, fica claro que não se trata apenas da personagem em questão, mas da  apresentação de uma realidade, com uma mulher negra em cena e um homem branco apresentado e representando o sistema corporativo policial.

Essa Mulher Arrastada tem nome, tem uma história que deve ser respeitada e uma justiça que ainda precisa ser feita. Até quando tantas mortes negras e periféricas vão ser escondidas e injustiçadas pela máscara do Estado?

Cláudia da Silva Ferreira. Presente!

Justiça para vidas negras. Ausente!



[1] Acadêmica do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia. Atriz nos espetáculos: CIDADE GRANDE, joão ninguém (Grupo Peripécias/UNIR), Era uma vez João e Maria... e Ainda é, Cabaré Ruante, A muy lamentável e cruel história de Píramo e Tisbe (Teatro Ruante) e Inimigos do Povo (Trupe dos Conspiradores).


Nenhum comentário:

Postar um comentário