Jamile Soares[1]
No dia 15 de setembro de 2019 ocorreu
no Teatro 1 do Sesc Esplanada de Porto Velho, dentro da programação do Festival Palco Giratório, a
apresentação do espetáculo A Mulher
Arrastada, projeto idealizado por Diones Camargo, dramaturgo, que soube
criar e costurar de forma coerente o texto teatral trazendo o devido incômodo que
tal temática deve trazer. Diones teve como parceira Adriane Mottola, encenadora com mais de
trinta anos de carreira e fundadora do grupo UTA - Usina do Trabalho do Ator da
Cia Stravaganza (grupo teatral de Porto Alegre).
A Mulher Arrastada, Teatro 1 do Sesc. Foto Raíssa Dourado. |
O espetáculo tem como ponto de partida
o assassinato de Cláudia Silva Ferreira, mulher negra, moradora do morro da
Congonha do Rio de Janeiro, 38 anos e que foi baleada por policiais militares
ao sair de casa para comprar pão para os filhos. Após ser baleada, Cláudia foi
rapidamente jogada no camburão da viatura policial que partiu acelerado.
Durante o caminho a porta do camburão abriu e Cláudia, mesmo presa, foi
projetada para fora sendo arrastada por 350 metros, fato que resultou em sua
morte.
Logo no início do espetáculo nos
deparamos com objetos de cena em cima de dois palcos pequenos, com um carro de
polícia de brinquedo, um frigobar com uma cerveja dentro e um homem branco,
vestido de policial militar. A disposição espacial não foi muito favorável ao
público, que em sua maioria não conseguiu ver o que ocorria na cena. Além disso, várias falas do ator não foram
escutadas, devido ao tumulto e também pela falta da devida projeção vocal
necessária para o ambiente escolhido.
Quando vou ver a mulher negra em cena? A resposta veio logo em seguida, quando
surge a figura de uma mulher negra nos conduzindo para adentrar o universo das
que vivem á margem. Logo descobrimos que é Cláudia Silva Ferreira
interpretada por
Celina Alcântara – com uma
interpretação forte, necessária para uma história tão impactante. A atriz por vezes utiliza de gritos para expressar
a indignação de um corpo assassinado pelas mãos do Estado e que não teve nem
seu nome e nem seu corpo respeitado; mulher
negra que representa tantas outras que são
arrastadas e invisibilizadas pela sociedade.
Atriz Celina Alcântara. Foto Raíssa Dourado |
As vidas da população negra,
principalmente periférica, como no caso de Cláudia, são descartáveis aos olhos
do Estado, representado no espetáculo por um policial branco que confessa seus
atos mas não sabe explicar o motivo de tais atitudes, simplesmente deixa claro
que esses fatos acontecem como devem acontecer, é tudo parte da estrutura da
sociedade opressora. O policial em questão é interpretado pelo ator Pedro
Nambuco, que soube demonstrar através da sua atuação a apatia, descaso e frieza
do sistema policial com a população negra.
A sonoplastia é muito bem executada,
com músicas que apresentam uma distorção, nos provocando uma sensação de
incômodo, algo que a obra artística tem como proposição.
Outros elementos, além da sonoplastia, se somam para criar o incômodo no
espectador, como o texto teatral, a interpretação cheia de silêncios e gritos, e
o cenário, que lembra um matadouro.
A história é apresentada não de forma linear mas fragmentária e
usando o corpo de Cláudia como um corpo significante da sociedade em que vivia,
como na parte em que atriz fala: “O aparelho reprodutor é a minha sentença”;
utiliza também o elemento da repetição, com intensificação das intenções,
conforme determinadas falas vão sendo repetidas. O
espetáculo trabalha em um crescente chegando a
muitos momentos de extrema indignação, um grito característico de um espetáculo
manifesto.
A obra artística possui como estética
teatral a linguagem do teatro performativo, pois tem como prioridade a
apresentação de uma história, de um corpo representativo de vários corpos de
mulheres negras. Por mais que a intenção
principal seja retratar os últimos momentos de vida de Cláudia, fica claro que
não se trata apenas da personagem em questão,
mas da apresentação de uma realidade, com uma mulher
negra em cena e um homem branco apresentado e representando o sistema
corporativo policial.
Essa Mulher Arrastada tem nome, tem
uma história que deve ser respeitada e uma justiça que ainda precisa ser feita. Até quando tantas mortes negras e periféricas vão
ser escondidas e injustiçadas pela máscara do Estado?
Cláudia da Silva Ferreira. Presente!
Justiça para vidas negras. Ausente!
[1]
Acadêmica do Curso Licenciatura em
Teatro da Universidade Federal de Rondônia. Atriz nos espetáculos: CIDADE GRANDE, joão ninguém (Grupo Peripécias/UNIR),
Era uma vez João e Maria... e Ainda é,
Cabaré Ruante, A muy lamentável e cruel história de Píramo e Tisbe (Teatro Ruante)
e Inimigos do Povo (Trupe dos
Conspiradores).
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