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terça-feira, 15 de outubro de 2019

“O teatro é o extrato da cultura de um povo”



Jamile Soares[1]

No dia 10 de Setembro de 2019, ocorreu, durante o Festival Palco Giratório na cidade de Porto Velho, o espetáculo Traga-me a cabeça de Lima Barreto, baseado na biografia de Lima Barreto (jornalista e escritor negro, filho de ex-escravos) O autor apresenta em seus livros a realidade de um país imerso no racismo durante o século XX, mas que perdura até hoje.

No espetáculo fica notável o uso tão inspirador das palavras, cada uma delas mastigada e deliciada com maestria pelo ator. O dramaturgo Luiz Marfuz, trouxe no seu texto elementos biográficos da vida de Lima Barreto, informações sobre os livros do autor e elementos históricos sobre a eugenia, racismo e genocídios da época.
Hilton Cobra. Foto Raíssa Dourado.

A direção é exercida por Fernanda Júlia, mulher negra, mestra e doutoranda em Artes Cênicas, Professora da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia e fundadora do Núcleo Afro Brasileiro de Teatro de Alagoinhas, responsável por diversos trabalhos com a temática da negritude.
Logo que o público entra no teatro se depara com um cenário cheio de referências, como livros de Lima Barreto, uma bebida alcoólica e um ambiente repleto de palavras ligadas à temática do espetáculo, bem como um objeto que esconde o cérebro de Lima Barreto – feito com búzios, referência à matriz-religiosa africana. A história se passa durante um Congresso dos Eugenistas que farão a autópsia do cérebro de Lima Barreto, com vozes em off fazendo perguntas e escancarando as ideias absurdas dessa pseudociência.

A própria imagem do ator Hilton Cobra já traz uma poética reivindicatória por sua representatividade como homem negro. Sua atuação vem cheia de técnica: dicção perfeita, trabalho corporal impecável e uma verdade absoluta nas suas emoções – o que faz o público se emocionar, seja por ser negra ou negro e sentir na pele a dor de uma sociedade repleta de racismo, seja por empatia à situação da negritude ou mesmo pelo choque de realidade a que são submetidos.

A obra teatral é claramente um grito de protesto aos moldes épicos brechtianos, com songs (músicas utilizadas como comentários, como parte do texto ou com função narrativa), palavras de Lima Barreto e do próprio ator que traz inserções atuais e quebra da quarta parede – que quase não existe em um espetáculo tão próximo ao público. Ator e público, dividem a pinga e a indignação pela desvalorização do trabalhador negro. De acordo com o espetáculo, Lima Barreto queria ter seu trabalho reconhecido, mas graças a sua cor e aos assuntos abordados em suas obras foi rechaçado, por ser considerado uma “mente inferior”.

A pergunta base do espetáculo consiste em: “Como um cérebro de raça inferior poderia ter produzido tantas obras literárias- romances, crônicas, contos, ensaios- se o privilégio da arte e da boa escrita é das raças superiores”? Lima Barreto tentou por três vezes ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, mas não conseguiu, deixando-o frustrado e indignado com o racismo eugênico escancarado. Fazendo um paralelo com a atualidade, temos Conceição Evaristo, mulher negra e autora de livros que trata da questão da negritude. A autora também foi preterida pela Academia, não é possível saber os reais motivos, mas sabe-se que a instituição é formada em sua maioria por homens brancos. Então, cabe a pergunta: o que mudou? Anos depois e as histórias continuam as mesmas.
Hilton Cobra como Lima Barreto. Foto Raíssa Dourado.

O espetáculo apresenta como estética a linguagem do Teatro Documentário, com o uso de documentos que serviram de base para toda estrutura da obra artística. Os documentos em questão tratam sobre as teses eugenistas e sobre os defensores da mesma, fazendo um recorte histórico sobre o Movimento Eugenista que ocorreu no início do século XX e que defendia a limpeza da raça, a predominância da raça dita superior que se limitava a homens brancos e mulheres brancas sem nenhum tipo de deficiência. Ainda assim, essas mulheres eram vistas apenas como boas procriadoras.
Como pode um espetáculo baseado em teses eugenistas que ocorreram durante o século XX ser tão atual e necessário? A resposta é dura: o racismo continua impregnado na sociedade brasileira, sendo as negras e negros ainda tratados como raça inferior, tendo menos oportunidades de trabalho, de estudo e sendo assassinados por um Estado que deveria protegê-los.

Por fim, termino essa crítica com uma fala do ator Hilton Cobra interpretando Lima Barreto: “Parto para o outro lado do Atlântico. Oxalá além daquela curva luminosa possa eu rever os meus ancestrais. Eu já não posso mais cumprir a minha promessa, concluir a história do povo negro no Brasil, mas outros com certeza o farão”.

Viva a negritude e sua resistência!


[1] Acadêmica do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia. Atriz nos espetáculos: CIDADE GRANDE, joão ninguém (Grupo Peripécias/UNIR), Era uma vez João e Maria... e Ainda é, Cabaré Ruante, A muy lamentável e cruel história de Píramo e Tisbe (Teatro Ruante) e Inimigos do Povo (Trupe dos Conspiradores).

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