No dia 10 de Setembro de
2019, ocorreu, durante o Festival Palco Giratório na cidade de Porto Velho, o
espetáculo Traga-me a cabeça de Lima
Barreto, baseado na biografia de Lima Barreto (jornalista e escritor negro,
filho de ex-escravos) O autor apresenta em seus livros a realidade de um país
imerso no racismo durante o século XX, mas que perdura até hoje.
No espetáculo fica
notável o uso tão inspirador das palavras, cada uma delas mastigada e deliciada
com maestria pelo ator. O dramaturgo Luiz Marfuz, trouxe no seu texto elementos
biográficos da vida de Lima Barreto, informações sobre os livros do autor e
elementos históricos sobre a eugenia, racismo e genocídios da época.
Hilton Cobra. Foto Raíssa Dourado. |
A direção é exercida por
Fernanda Júlia, mulher negra, mestra e doutoranda em Artes Cênicas, Professora
da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia e fundadora do Núcleo Afro
Brasileiro de Teatro de Alagoinhas, responsável por diversos trabalhos com a temática
da negritude.
Logo que o público entra
no teatro se depara com um cenário cheio de referências, como livros de Lima
Barreto, uma bebida alcoólica e um ambiente repleto de palavras ligadas à
temática do espetáculo, bem como um objeto que esconde o cérebro de Lima
Barreto – feito com búzios, referência à matriz-religiosa africana. A história
se passa durante um Congresso dos Eugenistas que farão a autópsia do cérebro de
Lima Barreto, com vozes em off fazendo perguntas e escancarando as ideias
absurdas dessa pseudociência.
A própria imagem do ator
Hilton Cobra já traz uma poética reivindicatória por sua representatividade
como homem negro. Sua atuação vem cheia de técnica: dicção perfeita, trabalho
corporal impecável e uma verdade absoluta nas suas emoções – o que faz o
público se emocionar, seja por ser negra ou negro e sentir na pele a dor de uma
sociedade repleta de racismo, seja por empatia à situação da negritude ou mesmo
pelo choque de realidade a que são submetidos.
A obra teatral é
claramente um grito de protesto aos moldes épicos brechtianos, com songs (músicas utilizadas como
comentários, como parte do texto ou com função narrativa), palavras de Lima
Barreto e do próprio ator que traz inserções atuais e quebra da quarta parede –
que quase não existe em um espetáculo tão próximo ao público. Ator e público,
dividem a pinga e a indignação pela desvalorização do trabalhador negro. De
acordo com o espetáculo, Lima Barreto queria ter seu trabalho reconhecido, mas
graças a sua cor e aos assuntos abordados em suas obras foi rechaçado, por ser
considerado uma “mente inferior”.
A pergunta base do
espetáculo consiste em: “Como um cérebro de raça inferior poderia ter produzido
tantas obras literárias- romances, crônicas, contos, ensaios- se o privilégio
da arte e da boa escrita é das raças superiores”? Lima Barreto tentou por três
vezes ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, mas não conseguiu,
deixando-o frustrado e indignado com o racismo eugênico escancarado. Fazendo um
paralelo com a atualidade, temos Conceição Evaristo, mulher negra e autora de
livros que trata da questão da negritude. A autora também foi preterida pela
Academia, não é possível saber os reais motivos, mas sabe-se que a instituição
é formada em sua maioria por homens brancos. Então, cabe a pergunta: o que
mudou? Anos depois e as histórias continuam as mesmas.
Hilton Cobra como Lima Barreto. Foto Raíssa Dourado. |
O espetáculo apresenta
como estética a linguagem do Teatro Documentário, com o uso de documentos que
serviram de base para toda estrutura da obra artística. Os documentos em
questão tratam sobre as teses eugenistas e sobre os defensores da mesma,
fazendo um recorte histórico sobre o Movimento Eugenista que ocorreu no início
do século XX e que defendia a limpeza da raça, a predominância da raça dita
superior que se limitava a homens brancos e mulheres brancas sem nenhum tipo de
deficiência. Ainda assim, essas mulheres eram vistas apenas como boas
procriadoras.
Como pode um espetáculo
baseado em teses eugenistas que ocorreram durante o século XX ser tão atual e
necessário? A resposta é dura: o racismo continua impregnado na sociedade
brasileira, sendo as negras e negros ainda tratados como raça inferior, tendo
menos oportunidades de trabalho, de estudo e sendo assassinados por um Estado
que deveria protegê-los.
Por fim, termino essa
crítica com uma fala do ator Hilton Cobra interpretando Lima Barreto: “Parto
para o outro lado do Atlântico. Oxalá além daquela curva luminosa possa eu
rever os meus ancestrais. Eu já não posso mais cumprir a minha promessa,
concluir a história do povo negro no Brasil, mas outros com certeza o farão”.
Viva a negritude e sua
resistência!
[1] Acadêmica
do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia. Atriz nos
espetáculos: CIDADE GRANDE, joão ninguém
(Grupo Peripécias/UNIR), Era uma vez João
e Maria... e Ainda é, Cabaré Ruante, A muy lamentável e cruel história de
Píramo e Tisbe (Teatro Ruante) e Inimigos
do Povo (Trupe dos Conspiradores).
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