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segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A MEMÓRIA DE UM DEUS EXUMADA POR OUTRO DEUS



Édier William[1] 

IM-PE-CÁ-VEL! Não tem como iniciar uma análise sobre esse monólogo sem conferir ao espetáculo esse status
É claro que deveria haver de minha parte uma certa imparcialidade na escrita deste texto. Todavia, Traga-me a cabeça de Lima Barreto é, talvez, uma das obras que mais me impactaram em toda a minha existência nessa ou nas vidas passadas das quais não me lembro. Tal impacto surge pela atuação inquestionável e ao extremo elogiável de Hilton Cobra, que é uma das maiores referências do teatro representativo dos negros na atualidade, e pela abordagem do espetáculo que por vários momentos nos faz questionar em que momento da existência o ser humano perdeu sua humanidade, ou se um dia ela a teve.
Hilton Cobra como Lima Barreto. Foto Raíssa Dourado.
Hilton Cobra, um homem/deus/ator de um pouco mais de um metro e meio de altura, agiganta-se ao exumar a consciência de Lima Barreto e a incorporada em si. Lima Barreto é o maior autor assumidamente negro da literatura Clássica Brasileira. É claro que, como todo mundo sabe e o próprio Lima Barreto assume no palco, neste monólogo, o maior escritor brasileiro é Machado de Assis que, por coincidência, era preto, e digo coincidência, pois Machado não se assume preto em sua obra e a elite brasileira o embranquece para que possam consumir suas escrituras. Bem, não estamos aqui para falar de Machado.
Por meio do pequeno homem, gigante ator, uma entidade se materializa no palco, deixando a plateia em choque por tomar nota do que muitos ainda não sabiam, os eugenistas foram/são reais - ainda que nos dias atuais pareça absurdo o conceito pregado pela eugenia, um dia fora objeto de argumentação de muitos teóricos para endossar seus preconceitos contra os negros ao afirmarem que negros são cognitivamente inferiores aos brancos. 
O espetáculo se passa em uma espécie de sala do purgatório, do céu, do inferno, ou simplesmente da memória de Lima Barreto, viva perpetuamente em sua obra inesquecível e indestrutível. Do piso e paredes brancas saltam palavras. Duas caixas de som que são personificadas durante o espetáculo, respondendo, perguntando, acusando e julgando o autor-personagem. Uma cadeira, uma cesta, cachaça e livros. É nesse cenário, à primeira vista simples, mas muito bem explorado, que é encenado um dos melhores textos da atualidade - e aqui cabe muitos elogios à direção do espetáculo, à iluminação e à sonoplastia, que não deixaram de usar nenhum milímetro do que tinha para ser explorado do texto, do ator e do cenário.
Foto Raíssa Dourado.
No decorrer do espetáculo - que brinca em ser clássico e contemporâneo, com muitas marcações que são executadas com precisão - alívios cômicos, provocados pelas interações com a plateia. Os alívios vindos com os risos, são muletas para que o público segure a emoção - que por vezes precisou usar os dedos, lenços, ou camisetas para secar os olhos, para conseguirem chegar ao fim do espetáculo e virem Lima Barreto no auge de seu confortável e merecido descanso com a glória de um deus. 




[1] Édier William Medeiros da Silva, graduado em Letras, FIAR (2012), Especialização em Metodologia do Ensino Superior, FAEL (2016), Técnico em Produção Audiovisual, CEP (2015). É escritor, dramaturgo, ator, diretor e produtor cultural.


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