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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Cláudia Silva Ferreira



Jamile Soares[1]

No dia 15 de setembro de 2019 ocorreu no Teatro 1 do Sesc Esplanada de Porto Velho, dentro da programação do Festival Palco Giratório, a apresentação do espetáculo A Mulher Arrastada, projeto idealizado por Diones Camargo, dramaturgo, que soube criar e costurar de forma coerente o texto teatral trazendo o devido incômodo que tal temática deve trazer. Diones teve como parceira  Adriane Mottola, encenadora com mais de trinta anos de carreira e fundadora do grupo UTA - Usina do Trabalho do Ator da Cia Stravaganza (grupo teatral de Porto Alegre).
A Mulher Arrastada, Teatro 1 do Sesc. Foto Raíssa Dourado.

O espetáculo tem como ponto de partida o assassinato de Cláudia Silva Ferreira, mulher negra, moradora do morro da Congonha do Rio de Janeiro, 38 anos e que foi baleada por policiais militares ao sair de casa para comprar pão para os filhos. Após ser baleada, Cláudia foi rapidamente jogada no camburão da viatura policial que partiu acelerado. Durante o caminho a porta do camburão abriu e Cláudia, mesmo presa, foi projetada para fora sendo arrastada por 350 metros, fato que resultou em sua morte.

Logo no início do espetáculo nos deparamos com objetos de cena em cima de dois palcos pequenos, com um carro de polícia de brinquedo, um frigobar com uma cerveja dentro e um homem branco, vestido de policial militar. A disposição espacial não foi muito favorável ao público, que em sua maioria não conseguiu ver o que ocorria na cena. Além disso, várias falas do ator não foram escutadas, devido ao tumulto e também pela falta da devida projeção vocal necessária para o ambiente escolhido.

Quando vou ver a mulher negra em cena? A resposta veio logo em seguida, quando surge a figura de uma mulher negra nos conduzindo para adentrar o universo das que vivem á margem. Logo descobrimos que é Cláudia Silva Ferreira interpretada por
Atriz Celina Alcântara. Foto Raíssa Dourado
Celina Alcântara com uma interpretação forte, necessária para uma história tão impactante. A atriz por vezes utiliza de gritos para expressar a indignação de um corpo assassinado pelas mãos do Estado e que não teve nem seu nome e nem seu corpo respeitado; mulher negra que representa tantas outras que são arrastadas e invisibilizadas pela sociedade.

As vidas da população negra, principalmente periférica, como no caso de Cláudia, são descartáveis aos olhos do Estado, representado no espetáculo por um policial branco que confessa seus atos mas não sabe explicar o motivo de tais atitudes, simplesmente deixa claro que esses fatos acontecem como devem acontecer, é tudo parte da estrutura da sociedade opressora. O policial em questão é interpretado pelo ator Pedro Nambuco, que soube demonstrar através da sua atuação a apatia, descaso e frieza do sistema policial com a população negra.

A sonoplastia é muito bem executada, com músicas que apresentam uma distorção, nos provocando uma sensação de incômodo, algo que a obra artística tem como proposição. Outros elementos, além da sonoplastia, se somam para criar o incômodo no espectador, como o texto teatral, a interpretação cheia de silêncios e gritos, e o cenário, que lembra um matadouro.

A história é apresentada não de forma linear mas fragmentária e usando o corpo de Cláudia como um corpo significante da sociedade em que vivia, como na parte em que atriz fala: “O aparelho reprodutor é a minha sentença”; utiliza também o elemento da repetição, com intensificação das intenções, conforme determinadas falas vão sendo repetidas. O espetáculo trabalha em um crescente chegando a muitos momentos de extrema indignação, um grito característico de um espetáculo manifesto.

A obra artística possui como estética teatral a linguagem do teatro performativo, pois tem como prioridade a apresentação de uma história, de um corpo representativo de vários corpos de mulheres negras. Por mais que a intenção principal seja retratar os últimos momentos de vida de Cláudia, fica claro que não se trata apenas da personagem em questão, mas da  apresentação de uma realidade, com uma mulher negra em cena e um homem branco apresentado e representando o sistema corporativo policial.

Essa Mulher Arrastada tem nome, tem uma história que deve ser respeitada e uma justiça que ainda precisa ser feita. Até quando tantas mortes negras e periféricas vão ser escondidas e injustiçadas pela máscara do Estado?

Cláudia da Silva Ferreira. Presente!

Justiça para vidas negras. Ausente!



[1] Acadêmica do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia. Atriz nos espetáculos: CIDADE GRANDE, joão ninguém (Grupo Peripécias/UNIR), Era uma vez João e Maria... e Ainda é, Cabaré Ruante, A muy lamentável e cruel história de Píramo e Tisbe (Teatro Ruante) e Inimigos do Povo (Trupe dos Conspiradores).


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Tão longe e tão perto


Stephanie Caroline Matos Dantas[1]

O que significa Seridó? Para algumas pessoas, uma região localizada no sertão do Rio Grande do Norte, para outras, nada. Para mim um lugar familiar que nunca conheci.
Titina Medeiros e Nara Kelly. Foto Raíssa Dourado.

No dia 25 de setembro, dentro da programação do Festival Palco Giratório, ocorreu a apresentação do espetáculo Meu Seridó, no Teatro 1 do Sesc. Meu Seridó é o primeiro espetáculo da produtora Casa de Zoé. A produtora e o espetáculo foram idealizados pela atriz Titina Medeiros, que teve o desejo de montar um monólogo que contasse a história do Seridó, região natal da atriz.  Porém a ideia transformou-se em um espetáculo com três atores e duas atrizes em cena: Titina Medeiros, Nara Kelly, Caio Padilha, Marcílio Amorim e Igor Fortunato que a cada cena interpretam diferentes personagens que dão vida à história do Seridó. O espetáculo tem a direção de César Ferrario e dramaturgia de Filipe Miguez.

De forma lúdica e cômica, por meio da estética do teatro popular nordestino, vamos conhecendo a origem do Seridó. Ao contar sobre a história dessa região, o espetáculo acaba falando também sobre o processo de colonização do Brasil.
Caio Padilha, que também assina a direção musical.
Foto Raíssa Dourado.

A música é um elemento marcante em toda a encenação, cantada e tocada ao vivo pelo elenco. São canções divertidas e poéticas que ficam gravadas em nossa mente. Às vezes, pego-me cantando a música da Rádio Difusora de Caicó ou dos três portugueses.

Por falar em rádio, uma das cenas mais encantadoras e divertidas, ao meu ver, foi a radionovela. Nesta cena, os locutores da Rádio Difusora de Caicó narram a história amorosa de Josefa e Caetano Dantas Correio, enquanto duas atrizes dublavam e encenavam a história. Fiquei encantada pela forma como fizeram, pois, a radionovela era transmitida nas rádios, onde se utilizava apenas a voz e a imagem ficava a cargo da imaginação do ouvinte. A proposta de ter narração e imagem, foi uma escolha certeira por parte da direção.

Assistindo ao espetáculo tive uma sensação de familiaridade, de conhecer o Seridó mesmo sem nunca ter colocado os pés nesta região. Deve-se isso ao fato de que a história contada é a nossa história e também porque a encenação foi tão bem-feita que viajamos ao Seridó em uma hora de espetáculo e voltamos sentindo saudades desse lugar mágico que está tão longe e ao mesmo tempo tão perto de nós.
Elenco de Meu Seridó. Foto Raíssa Dourado.

A montagem de Meu Seridó foi possível devido a Lei Djalma Maranhão (lei de incentivo à cultura, criada e promovida pela a Prefeitura de Natal) e graças ao projeto Palco Giratório, o espetáculo circulou por vários estados do Brasil. Ressalto que políticas públicas e projetos como Palco Giratório são necessários e importantes, pois nos afeta diretamente, assim como afetou o público de Porto Velho que saiu do teatro tendo um novo olhar sobre o sertão nordestino.


[1] Aluna do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Participante do Grupo de Pesquisa e Extensão em Crítica Teatral. Atuou como atriz nos espetáculos: Inimigos do Povo da Trupe dos Conspiradores e CIDADE GRANDE, João Ninguém do Grupo Peripécias (DArtes/UNIR).


terça-feira, 22 de outubro de 2019

Meu Seridó



Maycon Moura[1]
        
         A peça teatral Meu Seridó, teve como ideia inicial de Titina Medeiros (que faz parte do elenco), uma homenagem à sua cidade. A montagem do espetáculo durou cerca de 9 meses e possui como base a biografia de Seridó, sertão do Rio Grande do Norte. O elenco é composto por: Titina Medeiros, Nara Kelly, Caio Padilha, Marcílio Amorim e Igor Fortunato, com produção do grupo Casa de Zoé (RN). Direção de César Ferrario (que também opera o som), dramaturgia de Filipe Miguez, direção de arte de João Marcelino, direção musical de Caio Padilha, pesquisa de Leusa Araújo, designer de luz feito por Ronaldo Costa, cenotécnica de Rogério Ferraz, operação de luz de Janielson Silva e Ronaldo Costa, técnico de montagem, Sandro Paixão.

A sincronia e a sintonia entre os atores, o jogo com o público, o time cômico, o trabalho corporal e a atuação também ajudam e muito na composição da história. O texto é muito bem estruturado, nota-se uma pesquisa profunda para dar base à montagem do espetáculo, baseado na cultura seridoense.
Foto Raíssa Dourado.

         Os figurinos, são muito bem trabalhados de acordo com cada ator e com os movimentos pensados de cada personagem, há momentos em que a troca de figurinos ocorre assumidamente no palco, durante a peça, sem prejudicar ou quebrar a cena, deixando o espetáculo mais rico.

         Os objetos cênicos, ora são cenários, ora são simples objetos. O grupo trabalha com a ressignificação dos elementos cênicos, as molduras, que fazem parte do cenário desde o início, por exemplo, fazem parte deste jogo cênico. Vale ressaltar a iluminação, singela, porém, deixando a composição de cena mais fotográfica. Grande parte da sonoplastia, executada ao vivo, tanto nos momentos em que se quer transmitir a ideia do som das rádios antigas, quanto nas partes cantadas da peça, é também destaque, pois além de rica, demonstra a versatilidade dos intérpretes.
Elenco de Meu Seridó. Foto Raíssa Dourado.

         A imersão do público é notória; falas do texto que fascinam e ao mesmo tempo nos fazem refletir e conquistam a todos. Frases como “A gente é feito de dor” ou “A arte molda a sociedade”, aliadas aos demais elementos cênicos não deixam que ninguém desgrude os olhos, ouvidos e todos os sentidos até o fim da peça. Mesmo as crianças presentes ficaram atentas a cada cena.

Desse modo, o espetáculo conseguiu comunicar-se com todas as faixas etárias. A riqueza de detalhes trazida pelo grupo foi tão grande que fez com que todos que viram uma vez, queiram ver de novo.


[1] Maycon Douglas Pereira de Moura: Nascido em Vilhena – RO, 25 anos, Graduado em Letras  - Língua Portuguesa (2018), pela Faculdade Metropolitana e mestrando em Literatura pela Unir. Designer gráfico, editor de vídeo, palhaço e ator. Participou do Grupo de Teatro Wankabuki de 2013 a 2017. Atualmente integrante do Grupo de Teatro Ruante.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

“O teatro é o extrato da cultura de um povo”



Jamile Soares[1]

No dia 10 de Setembro de 2019, ocorreu, durante o Festival Palco Giratório na cidade de Porto Velho, o espetáculo Traga-me a cabeça de Lima Barreto, baseado na biografia de Lima Barreto (jornalista e escritor negro, filho de ex-escravos) O autor apresenta em seus livros a realidade de um país imerso no racismo durante o século XX, mas que perdura até hoje.

No espetáculo fica notável o uso tão inspirador das palavras, cada uma delas mastigada e deliciada com maestria pelo ator. O dramaturgo Luiz Marfuz, trouxe no seu texto elementos biográficos da vida de Lima Barreto, informações sobre os livros do autor e elementos históricos sobre a eugenia, racismo e genocídios da época.
Hilton Cobra. Foto Raíssa Dourado.

A direção é exercida por Fernanda Júlia, mulher negra, mestra e doutoranda em Artes Cênicas, Professora da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia e fundadora do Núcleo Afro Brasileiro de Teatro de Alagoinhas, responsável por diversos trabalhos com a temática da negritude.
Logo que o público entra no teatro se depara com um cenário cheio de referências, como livros de Lima Barreto, uma bebida alcoólica e um ambiente repleto de palavras ligadas à temática do espetáculo, bem como um objeto que esconde o cérebro de Lima Barreto – feito com búzios, referência à matriz-religiosa africana. A história se passa durante um Congresso dos Eugenistas que farão a autópsia do cérebro de Lima Barreto, com vozes em off fazendo perguntas e escancarando as ideias absurdas dessa pseudociência.

A própria imagem do ator Hilton Cobra já traz uma poética reivindicatória por sua representatividade como homem negro. Sua atuação vem cheia de técnica: dicção perfeita, trabalho corporal impecável e uma verdade absoluta nas suas emoções – o que faz o público se emocionar, seja por ser negra ou negro e sentir na pele a dor de uma sociedade repleta de racismo, seja por empatia à situação da negritude ou mesmo pelo choque de realidade a que são submetidos.

A obra teatral é claramente um grito de protesto aos moldes épicos brechtianos, com songs (músicas utilizadas como comentários, como parte do texto ou com função narrativa), palavras de Lima Barreto e do próprio ator que traz inserções atuais e quebra da quarta parede – que quase não existe em um espetáculo tão próximo ao público. Ator e público, dividem a pinga e a indignação pela desvalorização do trabalhador negro. De acordo com o espetáculo, Lima Barreto queria ter seu trabalho reconhecido, mas graças a sua cor e aos assuntos abordados em suas obras foi rechaçado, por ser considerado uma “mente inferior”.

A pergunta base do espetáculo consiste em: “Como um cérebro de raça inferior poderia ter produzido tantas obras literárias- romances, crônicas, contos, ensaios- se o privilégio da arte e da boa escrita é das raças superiores”? Lima Barreto tentou por três vezes ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, mas não conseguiu, deixando-o frustrado e indignado com o racismo eugênico escancarado. Fazendo um paralelo com a atualidade, temos Conceição Evaristo, mulher negra e autora de livros que trata da questão da negritude. A autora também foi preterida pela Academia, não é possível saber os reais motivos, mas sabe-se que a instituição é formada em sua maioria por homens brancos. Então, cabe a pergunta: o que mudou? Anos depois e as histórias continuam as mesmas.
Hilton Cobra como Lima Barreto. Foto Raíssa Dourado.

O espetáculo apresenta como estética a linguagem do Teatro Documentário, com o uso de documentos que serviram de base para toda estrutura da obra artística. Os documentos em questão tratam sobre as teses eugenistas e sobre os defensores da mesma, fazendo um recorte histórico sobre o Movimento Eugenista que ocorreu no início do século XX e que defendia a limpeza da raça, a predominância da raça dita superior que se limitava a homens brancos e mulheres brancas sem nenhum tipo de deficiência. Ainda assim, essas mulheres eram vistas apenas como boas procriadoras.
Como pode um espetáculo baseado em teses eugenistas que ocorreram durante o século XX ser tão atual e necessário? A resposta é dura: o racismo continua impregnado na sociedade brasileira, sendo as negras e negros ainda tratados como raça inferior, tendo menos oportunidades de trabalho, de estudo e sendo assassinados por um Estado que deveria protegê-los.

Por fim, termino essa crítica com uma fala do ator Hilton Cobra interpretando Lima Barreto: “Parto para o outro lado do Atlântico. Oxalá além daquela curva luminosa possa eu rever os meus ancestrais. Eu já não posso mais cumprir a minha promessa, concluir a história do povo negro no Brasil, mas outros com certeza o farão”.

Viva a negritude e sua resistência!


[1] Acadêmica do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia. Atriz nos espetáculos: CIDADE GRANDE, joão ninguém (Grupo Peripécias/UNIR), Era uma vez João e Maria... e Ainda é, Cabaré Ruante, A muy lamentável e cruel história de Píramo e Tisbe (Teatro Ruante) e Inimigos do Povo (Trupe dos Conspiradores).

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A MEMÓRIA DE UM DEUS EXUMADA POR OUTRO DEUS



Édier William[1] 

IM-PE-CÁ-VEL! Não tem como iniciar uma análise sobre esse monólogo sem conferir ao espetáculo esse status
É claro que deveria haver de minha parte uma certa imparcialidade na escrita deste texto. Todavia, Traga-me a cabeça de Lima Barreto é, talvez, uma das obras que mais me impactaram em toda a minha existência nessa ou nas vidas passadas das quais não me lembro. Tal impacto surge pela atuação inquestionável e ao extremo elogiável de Hilton Cobra, que é uma das maiores referências do teatro representativo dos negros na atualidade, e pela abordagem do espetáculo que por vários momentos nos faz questionar em que momento da existência o ser humano perdeu sua humanidade, ou se um dia ela a teve.
Hilton Cobra como Lima Barreto. Foto Raíssa Dourado.
Hilton Cobra, um homem/deus/ator de um pouco mais de um metro e meio de altura, agiganta-se ao exumar a consciência de Lima Barreto e a incorporada em si. Lima Barreto é o maior autor assumidamente negro da literatura Clássica Brasileira. É claro que, como todo mundo sabe e o próprio Lima Barreto assume no palco, neste monólogo, o maior escritor brasileiro é Machado de Assis que, por coincidência, era preto, e digo coincidência, pois Machado não se assume preto em sua obra e a elite brasileira o embranquece para que possam consumir suas escrituras. Bem, não estamos aqui para falar de Machado.
Por meio do pequeno homem, gigante ator, uma entidade se materializa no palco, deixando a plateia em choque por tomar nota do que muitos ainda não sabiam, os eugenistas foram/são reais - ainda que nos dias atuais pareça absurdo o conceito pregado pela eugenia, um dia fora objeto de argumentação de muitos teóricos para endossar seus preconceitos contra os negros ao afirmarem que negros são cognitivamente inferiores aos brancos. 
O espetáculo se passa em uma espécie de sala do purgatório, do céu, do inferno, ou simplesmente da memória de Lima Barreto, viva perpetuamente em sua obra inesquecível e indestrutível. Do piso e paredes brancas saltam palavras. Duas caixas de som que são personificadas durante o espetáculo, respondendo, perguntando, acusando e julgando o autor-personagem. Uma cadeira, uma cesta, cachaça e livros. É nesse cenário, à primeira vista simples, mas muito bem explorado, que é encenado um dos melhores textos da atualidade - e aqui cabe muitos elogios à direção do espetáculo, à iluminação e à sonoplastia, que não deixaram de usar nenhum milímetro do que tinha para ser explorado do texto, do ator e do cenário.
Foto Raíssa Dourado.
No decorrer do espetáculo - que brinca em ser clássico e contemporâneo, com muitas marcações que são executadas com precisão - alívios cômicos, provocados pelas interações com a plateia. Os alívios vindos com os risos, são muletas para que o público segure a emoção - que por vezes precisou usar os dedos, lenços, ou camisetas para secar os olhos, para conseguirem chegar ao fim do espetáculo e virem Lima Barreto no auge de seu confortável e merecido descanso com a glória de um deus. 




[1] Édier William Medeiros da Silva, graduado em Letras, FIAR (2012), Especialização em Metodologia do Ensino Superior, FAEL (2016), Técnico em Produção Audiovisual, CEP (2015). É escritor, dramaturgo, ator, diretor e produtor cultural.


domingo, 13 de outubro de 2019

Do Pôr do Sol ao cair da noite

Stephanie Caroline Matos Dantas¹

No dia 07 de setembro, ocorreu no Parque da cidade, a abertura do Palco Giratório. O Palco Giratório é um importante festival de artes cênicas realizado pelo Serviço Social do Comércio (SESC).  O espetáculo convidado para abrir a programação, foi O Palhaço de la mancha, da Cacompanhia de Artes Cênicas, coletivo que atua em Manaus desde 2017, realizando espetáculos teatrais e a arte da palhaçaria.
Cacopanhia. Foto Raíssa Dourado.
O Palhaço de La Mancha retrata a obra clássica de Miguel de Cervantes (1547-1616): Dom Quixote, na ótica da Palhaça Pãobolo (Stephane Bacelar) e dos Palhaços Caco (Jean Palladino) e Numadi (Richard Harts). O trio se aventura entre moinhos, cataventos e batalhas, proporcionado pela magia literária de Cervantes e pela comicidade, loucura e lógica do palhaço e da palhaça.
O espetáculo é dirigido por Jhon Weiner, professor da Universidade Estadual do Amazonas. A direção propõe que o espetáculo, sempre que possível, seja apresentado ao pôr do sol, para simbolizar o descanso de Dom Quixote. Sua morte se daria quando o sol já não brilhasse mais.
Ainda no elenco, temos Francine Marie responsável pela execução da música e também assina, juntamente com Paulo Tiago, a concepção dos adereços. A percussão é interessante e bem executada. Porém, em alguns momentos, os palhaços e a palhaça não estavam no mesmo tempo da música, havia desencontros.
Vale ressaltar o trabalho de Dione Maciel, responsável pela concepção dos figurinos: belíssimos e nos remete aos tempos antigos.
A interação com o público, no meu ponto de vista, foi pouca. Acredito que os palhaços e a palhaça poderiam receber o público quando eles estivessem chegando, interagindo com os mesmos. Faz-se necessário trabalhar melhor a triangulação. Em vários momentos, Caco, Numadi e Pãobolo ficavam fechados entre si e não abriam a cena para o público. É importante no teatro de rua a relação que se estabelece, por meio da triangulação, entre ator/atriz e público.
O Palhaço de La Mancha é um espetáculo novo, que teve sua estreia em 2018, por isso precisa ser apresentado mais vezes para ganhar ritmo e assim poder observar o que funciona e o que não funciona na relação com o público. O espetáculo tem questões importantes a serem ditas. Quando Sancho Pança relata os seus medos para Dom Quixote, é uma cena muito poética e tocante.
Foto Raíssa Dourado.
O espetáculo trouxe-me a reflexão sobre a importância da utilização do gênero feminino. Muitas vezes, utilizamos as palavras apenas no gênero masculino. Quando nomeamos um grupo de pessoas no masculino, que contém mulheres e homens, acreditamos que ao fazermos isso, estamos mencionando as mulheres desse grupo. Porém a estamos excluindo. Segundo o Manual para o uso não sexista da linguagem, disponível na internet, “Para que a mulher esteja representada é necessário nomeá-la”. Quando a palhaça Pãobolo e Francine enfatizam durante o espetáculo as palavras no feminino: “palhaça”, “mercadora”, “senhora” e “taberneira”, me senti representada e reflexiva a respeito. Ressalto a importância de manter esta proposição do início ao fim do espetáculo.
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¹ Discente do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia. 

sábado, 12 de outubro de 2019

Agreste ou das durezas e delícias das boas histórias


Adailtom Alves Teixeira[1]

Nascido a partir de um exercício proposto na universidade, o espetáculo Agreste do coletivo Barulho do Acre, nos lembra que somos feitos também de boas histórias. O espetáculo foi apresentado dia 09 de setembro de 2019 no Teatro 1 do Sesc Rondônia, dentro da programação do Festival Palco Giratório, na cidade de Porto Velho. O espetáculo nos transportou para um nordeste que, talvez, não mais exista, ainda que o que foi contado seja recorrente em todo o país. Trata-se de uma história de amor. Ainda assim, há “algo no amor deles que não devia acontecer”.

Essa não é a primeira montagem do texto primoroso do pernambucano e radicado em São Paulo, Newton Moreno. A montagem realizada pelo grupo Razões Inversas (SP), lhe rendeu os prêmios Shell e APCA de melhor texto, além de projeção nacional, na excelente direção de seu ex-professor Márcio Aurélio. A história de amor de duas pessoas humildes é linda, enquanto “permitida socialmente”. Aí está a grandeza do texto: por meio de algo simples e cotidiano, descortina os preconceitos e as maldades de uma sociedade. Escrito em uma mistura de cultura popular e tons de erudição, a história de amor de um casal que viveram juntos por 22 anos em perfeita união e, aparentemente, eram benquistos por todos até descobrirem algo sobre suas sexualidades.
Matheus Filgueira. Foto Raíssa Dourado.

A montagem do Barulho do Acre, com direção de Sandra Buh[2], é minimalista. Aposta totalmente na palavra, para que a história pule aos nossos ouvidos. A direção musical, a cargo de Écio Rogério – que executa ao vivo com a diretora – cria, por meio da paisagem sonora, o ambiente nordestino, já que em cena, não há elementos que possam propriamente remeter à essa geografia. O mínimo de elementos que a direção opta, para realçar ainda mais a história, está presente no figurino e no cenário – que é composto de apenas uma cadeira e um chão de palavras.

A atuação de Matheus Filgueira, o arquiteto-ator, vai nos envolvendo em sua narrativa – trata-se de um espetáculo épico – até explodir em diversas personagens, que encanta pela sobriedade, pela ausência de exageros, mesmo nas personagens que poderíamos ver como caricatas, demonstrando, assim, seu domínio de cena.
Écio, Sandra e Matheus. Foto Raíssa Dourado.

Há um trecho da peça em que o narrador afirma que “é preciso muita coragem para dar um passo”. O Barulho do Acre deu um passo certeiro na escolha do texto, com uma temática fundamental nos dias atuais, afinal “qualquer maneira de amor vale a pena”, já dizia o poeta. Além disso, foram corajosos em apostarem na palavra, esta que já imperou por séculos e depois foi tão negada na cena contemporânea, mas como demonstra a montagem de Agreste, ainda é fundamental nos palcos, sobretudo nas boas histórias.



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista; integrante do Teatro Ruante; coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão em Crítica Teatral; e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

[2] Ficha Técnica enviada por Sandra Buh:
Direção: Sandra Buh
Ator: Matheus Filgueira
Criação e execução musical: Écio Rogério e Sandra Buh
Figurino: Sandra Buh e Matheus Filgueira
Cenografia: Mateus Filgueira

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Grupo de Pesquisa e Extensão em Crítica Teatral


Adailtom Alves Teixeira

Desde o início de agosto desse ano (2019, um pequeno grupo de artistas tem se reunido para estudar, discutir e produzir críticas na área teatral. O projeto tem minha coordenação e é intitulado Grupo de Pesquisa e Extensão em Crítica Teatral e tem o objetivo de firmar as análises críticas na cidade.

Os envolvidos tomaram contato com alguns conceitos e tiveram a oportunidade de receberem uma aula com o professor Dr. Alexandre Mate, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP), que coordena um grupo de pesquisa em críticas teatrais cadastrado no CNPq e do qual sou membro.


Após alguns encontros estabelecemos como início de produção o Festival Palco Giratório, que ocorreu em setembro e teve uma programação extensa e diversa com dezenas de espetáculos. O coletivo escolheu antecipadamente alguns espetáculos, tendo cada apresentação escolhida ao menos duas apreensões críticas.

Esperamos que esse trabalho venha render frutos e que seja o início de um longo diálogo com a cena teatral de Porto Velho. Evoé!

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Audiência pública e os rumos da cultura em Porto Velho


Adailtom Alves Teixeira[1]

No último dia 03 de outubro ocorreu uma Audiência Pública sobre cultura na Câmara Municipal de Porto Velho. A demanda surgiu das provocações do Movimento PaCultura, que tem mexido com a cena cultural da cidade no que tange às políticas públicas. O coletivo pressionou para que a Funcultural (Fundação Cultural de Porto Velho) realizasse a Conferência Municipal de Cultura, seguida do acompanhamento da posse do novo Conselho de Cultura e agora essa Audiência – que, diga-se de passagem, durou meses até conseguirem, pois o pedido havia sido protocolado em março desse ano. O PaCultura vem se reunindo desde fevereiro e desde lá, muitas águas rolaram.

O dado mais importante da Audiência, presidida por Edwilson Negreiros (PSB) – e também atual Presidente da Câmara – é que o movimento obteve o compromisso do vereador a não votar o orçamento do próximo ano sem antes destinar uma porcentagem ao Fundo Municipal de Cultura. Cabe ressaltar que os artistas que lá estavam sugeriram o mesmo percentual do Estado de Rondônia: 0,5%. Se for destinado esse aporte de recursos para a Cultura, será o início de uma mudança significativa para os fazedores de arte da cidade. Claro, isso deve vir por meio dos programas já existentes e de editais transparentes, mas o passo inicial para qualquer política pública é que haja recursos.

A relação de quem faz cultura com os entes estatais sempre passou por momentos bons e conflituosos desde a Grécia Antiga. Mas sempre que há no Estado (município, UF e União) pessoas comprometidas com os avanços civilizacionais, nesses momentos as políticas públicas dão uma guinada e todos ganham, sobretudo os cidadãos, destino final de toda e qualquer política pública importante.

É fato que todas as pessoas têm uma forte relação com as artes, inclusive os políticos, por isso, via de regra, não se colocam contra. Todos têm algum momento marcante de suas vidas em que obras artísticas são lembradas: um poema, uma música, um filme um local histórico etc. Dessa forma, “ninguém” é contra a cultura, muito embora ela seja sempre a última área a ser pensada. E, ultimamente, artistas vem sendo criminalizados, como se eles não fossem importantes para o desenvolvimento do país.

A cidade de Porto Velho já tem algumas leis que não vem sendo cumpridas: Sistema Municipal de Cultura, Fundo Municipal de Cultura, Lei 1820 de 2009 (Programa de Fomento ao Teatro). Passou da hora do poder público dar a devida atenção a este problema. É preciso fazer com que essas leis saiam do papel.

O sociólogo Zygmunt Bauman em seu livro A cultura no mundo líquido moderno (2013) afirma que “Entre 1815 e 1875 [portanto, pós-revolução francesa, pós-terror, passando pela Primavera dos Povos e a Comuna de Paris], o regime do Estado mudou cinco vezes. A despeito das drásticas diferenças entre eles, um tema estabelecido por seus predecessores foi aceito sem questionamento: a necessidade de as autoridades do Estado prosseguirem em seus esforços no sentido de esclarecer e cultivar, noções agora coletivamente conhecidas como desenvolvimento e disseminação da cultura.” Mesmo o regime tendo mudado cinco vezes, repito, o regime, ninguém questionou o significado das artes e da cultura para aquelas sociedade, bem como a importância de investimento para o seu desenvolvimento. E hoje, esse é um dos países que miramos e vemos como civilizado.

Lembro um grande diretor de teatro, Amir Haddad, quando afirma que “os políticos fazem o país, os militares fazem a pátria, mas só os artistas fazem uma nação”. Ainda que tenha exageros nessa máxima, quando lembramos de Portugal pensamos em Camões, Fernando Pessoa, no fado; o Brasil é conhecido lá fora pela sua música, sua cultura popular, como o carnaval etc. Via de regra são os artistas, as obras artísticas, os monumentos patrimoniais  que nos fazem lembrar dos lugares, das cidades, dos países e marcam nossa história pessoal e coletiva. Por que então a arte e a cultura são tão negligenciadas?

No âmbito nacional gostaria de destacar as três dimensões da cultura, presentes no Plano Nacional de Cultura (Lei 12.343/2010), do qual Porto Velho é signatário: Dimensão simbólica, cidadã e econômica. A dimensão simbólica reconhece que todo ser humano é capaz de criar símbolos que se expressam nos costumes, nas artes, na culinária, nas crenças etc. A dimensão cidadã, reconhece a cultura como direito social, já presente na Constituição de 1988, isto é, por meio das políticas públicas, as pessoas devem acessar os “meios de produção, difusão e fruição”. A dimensão econômica, coloca a cultura como estratégia do desenvolvimento econômico.

E aqui é importante atentarmos ao fato e vermos a cultura como geradora de renda e empregos – em tempos de desempregos massivos, é fundamental o investimento em arte e cultura. Cito dois exemplos, para que se entenda a complexidade da cadeia produtiva das áreas artísticas – cabe destacar que cada linguagem tem suas especificidades. Vamos aos exemplos: um festival de teatro quando recebe recursos, por não lidar com a lógica da acumulação, faz com que todo o dinheiro circule por outras áreas: gráficas, transportes aéreos e terrestres, hotéis, restaurantes, até pequenos ambulantes ganham, além disso, os demais comércios, pois os artistas consomem no lugar onde ocorre o festival; um outro exemplo recente, o filme Bacurau impactou direta e indiretamente mais de 800 pessoas, apenas um único produto cultural mobilizou essa quantidade de pessoas. Isso talvez explique o pequeno milagre que a cultura brasileira opera: os investimentos na área nunca chegam se quer a 1%, mas a economia da cultura é responsável por quase 3% do PIB nacional.

Penso que fica claro a importância da Audiência Pública e do comprometimento do Presidente da Câmara em haver orçamento para a área cultural no próximo ano. Fica claro também a importância de mais artistas participarem do Movimento PaCultura, afinal as conquistas vêm organização e luta. Por fim, cabe destacar, que a vitória não está assegurada, é preciso acompanhar e cobrar os recursos e o funcionamento do Fundo Municipal de Cultura, só assim, talvez tenhamos o desenvolvimento de todas as linguagens artísticas em Porto Velho.


[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; integrante do Teatro Ruante; articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Teatro Acreano


Amanara Brandão dos Santos Lube

Trabalho desenvolvido na matéria Teatro Brasileiro, ministrada pelo professor Adailtom Alves Teixeira, Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia, junho de 2019.
   

Apresentação

A partir das aulas desenvolvidas no semestre 2019.1 acerca do Teatro Brasileiro, a presente pesquisa tem o intuito de pontuar informações que possibilitem o conhecimento sobre o teatro desenvolvido no etado do Acre, identificando e entendendo suas origens e características.
            A história do teatro brasileiro, bem como a história geral oficial, é contada a partir de um recorte que atenda aos interesses de quem a escreve, e nesse contexto encontramos como obstáculo no apanhado histórico teatral a escassez de informações sobre o teatro desenvolvido no Brasil que não esteja limitado ao eixo Rio-São Paulo.
            Quando se trata da Região Norte, é ainda mais gritante a ausência de registros, como se por aqui não houvesse arte ou pouco importasse o que acontece, o que artistas locais fazem ou se não houvesse público – com seu direito constitucional de ter acesso à cultura.
            Aos poucos essa realidade vem sendo transformada, com iniciativas de artistas, pesquisadoras e pesquisadores, que têm se empenhado na tarefa de registrar a história do teatro desenvolvido em terras amazônicas brasileiras, que ao contrário do que está difundido, existe e resiste há bastante tempo. É a partir de pesquisas dessa natureza, já realizadas ou em andamento, que vamos discorrer aqui acerca do teatro acreano.

Desenvolvimento
           
1.                  Contexto Histórico

Apesar de já ter sido visitada pelas expedições portuguesas, a colonização efetiva das terras que hoje compreendem o estado do Acre inicia-se em meados do século XIX, predominantemente por nordestinos que se direcionavam à Amazônia fugindo de difíceis condições sociais e em busca de oportunidades de renda com a extração do látex (essa movimentação em massa ficou conhecida como “Primeiro Surto da Borracha”).
Em meio as difíceis condições de trabalho, materiais e econômicas, e o isolamento geográfico ao qual a região estava sujeita até meados da década de 1980, tornou-se quase impossível falar de criações culturais acreanas no final do século XIX e início do século XX.
Esta tarefa ficou a serviço da imprensa local, que dava vazão às criações poéticas e intelectuais no início do século XX.

As publicações literárias de tal imprensa eram assentadas sobre o homem e o ambiente acriano, em um processo de busca de identidade e procura de superação do isolamento geográfico que envolvia a região. Essas produções foram escritas e publicadas nos jornais locais, desde 1903, em um movimento esporádico, mas significativo, de confecção de poemas impressos em pequenas partes dos jornais.
Somente no período posterior à elevação do Acre de território nacional à categoria de estado, em 1962, iniciou-se a circulação de um número maior de artigos poéticos, bem como as primeiras publicações de livros de poesias e prosas produzidos no estado por autores acrianos. O trabalho ainda se firmava em uma busca de identidades acrianas através de tentativas de inserção da produção literária no cenário nacional e amazônico, porém acrescentou-se a esse fato uma procura por originalidade na escrita da poesia e da prosa. Essa fase da intelectualidade e produção literária ocorreu simultaneamente com as iniciativas de intervenções das outras linguagens artísticas, já citadas (MELO, 2009).

Apenas após a elevação do Acre de território nacional à categoria de Estado (que ocorreu em 1962), ocorre a publicação dos primeiros livros de poesia e prosa de autores do estado, em busca de originalidade e a criação de uma identidade acreana. A partir daí inicia-se o que pode ser considerado a consolidação de um discurso artístico, constituindo os primeiros grupos de teatro e de música, festivais musicais, mostra de artes plásticas e produção de algumas películas de cinema.

2.    O Movimento Teatral

Os primeiros grupos de teatro estavam vinculados às CEBs – Comunidades Eclesiais de Base, para fins religiosos, sendo o primeiro grupo o “GESCA” (Grupo de Estudos Sociais Comunitário da Amazônia), com sua primeira dramatização sendo uma adaptação do texto Morte e Vida Severina (1965), de João Cabral de Melo Neto.
Porém, o movimento teatral no Estado do Acre se constitui, quanto movimento organizado, na década de 1970.
Os principais grupos que fizeram parte do movimento teatral amador, na cidade de Rio Branco, nesse período, foram Semente, Apúi, De Olho na Coisa, Gruta, Grito, Macaíba, Sacy, Fragmentos, Testa, Pimentinha, Vogal, Piatemar e Kennedy. Os grupos musicais foram constituídos, principalmente, por: Raízes, Vitória Régia e Brasas do Forró. Foram, também, realizados alguns festivais de músicas, tais como, O canto da Seringueira e o Festival Acreano de Música Popular – FAMP. No cinema, as películas foram elaboradas pelas produtoras ECAJA e Cine Clube Aquiri. Também houve alguns movimentos literários como o Barracão e o Contexto Cultural, veiculando poesias, contos, crônicas, literatura de cordel e artes plásticas (Rocha, 2006, p. 176 apud MELO, 2010).

3.        Forma e conteúdo

O teatro que vem a ser produzido a partir da década de 1970 é marcado por seu conteúdo de engajamento político, onde jovens acreditavam que através da linguagem teatral, em tom de denúncia e agitação popular, poderiam trazer mudanças ao cenário social, com uma estética voltada às questões amazônicas acreanas. A época ficou marcada pelo movimento chamado “Resistência Cultural”, que seria uma separação entre a cultura acreana e a cultural ‘de fora’ – sudeste e também resistência à ocupação das terras amazônicas; caracterizado como um teatro de militância política e de valorização de aspectos regionalistas, trançando o esboço de uma identidade cultural acreana.
A Federação de Teatro Amador do Acre (FETAC) é fundada em maio de 1978, a partir da reunião entre os grupos GRUTA (Grupo de Teatro Amador), Vogal (Grupo Vogal de Teatro Amador), Macaíba, Grupo Semente de Teatro Amador, Grupo Experimental de Teatro Universitário e Grupo Piatema de Teatro Amador, para discutirem a criação de uma instituição que legitimasse os interesses da crescente classe artística.
Através dessa instância representativa dos interesses da classe teatral abriu-se no Estado caminhos para trocas de experiências com outros grupos do cenário teatral, em sua maioria filiados à Confederação Nacional do Teatro Amador (CONFENATA). Iniciou-se, também, a partir daí, a vinda de diretores de teatro de outros Estados, que foram à Rio Branco ministrar diversos cursos, como os de direção teatral, interpretação, cenografia, entre outros (ROCHA, 2006, p. 193). No que se refere à exemplificação de grupos que estiveram à frente do formato de teatro de grupo a que nos referimos nesse tópico, podemos citar o Grupo Ensaio, dirigido por Gregório Filho. Esse é um exemplo de grupo evadido de uma Comunidade Eclesial de Base e que tem características e importância no sentido de ter sido um dos primeiro grupos, no Estado, a pensar em prática de preparação de ator e produção de peças sem fins religiosos. Das peças encenadas pelo grupo, e que sobreviveram ao esquecimento que o tempo destinou a um grande número de obras da época, podemos citar: Tempo de Espera (1975), A Cigarra e a Formiga (1976), A Margarida curiosa visita a floresta negra, É pois é. O Ensaio também foi pioneiro ao propor reuniões de diferentes grupos para prática de exercícios teatrais, tais como estudos de preparação do ator e leituras dramatizadas feitos no auditório do Colégio Acreano. O grupo era eclético em suas proposições, fazia tanto montagem de textos produzidos por dramaturgos acrianos como também montagens de peças de grandes dramaturgos. Por volta de 1975 e 1976 foi montada, por exemplo, a peça ― Aquele que diz sim, Aquele que diz não de Bertolt Brecht (Marco Afonso apud Calixto Marques, 2005). Outro grupo, especializado na linguagem teatral, na década de 1970, foi o Grupo Testa que resultou da reunião de alguns outros grupos de Rio Branco, como o Sacy, Fragmentos e Baia e era dirigido pela atriz Vera Fróes. Diferente de outros grupos, o Testa possuía vínculo institucional com uma entidade paraestatal, a saber, o SESC-AC. Por esse motivo, as encenações produzidas pelo grupo ocorriam nas dependências do próprio SESC, no Teatro de Arena, construído em 1979. Devido à grande proximidade do grupo com a instituição, foi comum a utilização de funcionários do próprio SESC na criação de espetáculos e na participação dos processos de encenação. Em um trecho de um dos referidos manifestos, produzidos pelos diretores da FETAC, percebe-se como as produções vinculadas ao SESC criavam polêmicas entre a classe artística acriana, uma vez que os privilégios dados para alguns grupos e a tomada deposição frente a uma determinada estética, não eram bem aceitos por muitos do movimento teatral (MELO, 2010).

            Um manifesto publicado pela FETAC em 1980 retrata as temáticas presentes nas encenações da época: “De um modo geral os grupos dão preferência a textos que dizem respeito à realidade acreana, apesar das dificuldades de encontrá-los sem que deixe de haver trabalhos experimentais baseados em tragédias gregas e teatros do absurdo” (Manifesto da FETAC, 1980:02-03).

Ao concluir o Manifesto, a comissão diretora falou o seguinte a respeito de suas pretensões para o movimento teatral:

A proposta da Comissão Diretora é de dirigir os trabalhos da FETAC, de maneira a servir também aos movimentos de oposição popular e a afirmação da cultura regional e nacional, pois acreditamos que o teatro não pode ser apolítico, desvinculado do processo histórico do povo. Estamos dispostos a trabalhar para a organização de uma política cultural digna da região norte, para não ficarmos sendo manipulados pela política reacionária estabelecida no país. (Manifesto da FETAC, 1980:03)
Quando fala dos movimentos de oposição popular, a Comissão Diretora está se referindo aos movimentos de intervenção política bastante atuantes, na época, no período histórico em que ocorria uma conturbada agitação e reestruturação sócio-política do estado. Por isso, estava incluído, no planejamento de trabalho, o apoio tanto às novas instituições de oposição popular quanto às que se faziam na afirmação da cultura regional e nacional” (MELO, 2009).
           
            A cena na época também foi marcada pelo “Teatro Relâmpago”, uma modalidade desenvolvida por alguns grupos no Estado, que, segundo Elderson Melo (2009), consiste em “(...) esquetes escritas, ensaiadas e apresentados num curto espaço de tempo, sem censura, envolvendo vários grupos, com o objetivo de levantar a discussão e reflexão sobre um acontecimento presente que precisa ser divulgado, geralmente a convite de alguma entidade como Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, do Meio Ambiente e Pró-Índio” sendo um tipo de trabalho que está presente na cena acreana desde 1978. A carência de espaços físicos específicos fez com que os bares se tornassem palco das manifestações artísticas na época.

O Grupo Semente, foi formada por jovens estudantes e teve sua estrutura criada a partir não mais de questões religiosas. Uma das características desse grupo foi sua ligação com as questões políticas, seguindo uma linha de pensamento eminentemente trotskista. O grupo teve vida curta, mas dele saíram representantes significativos para o movimento teatral e político acriano, como a ex-ministra do meio ambiente Marina Silva, o governador do Estado, Arnóbio Marques, e o professor do departamento de história da UFAC, José Dourado. Por volta de 1978, o grupo conseguiu construir um espaço próprio para seus encontros, estudos e ensaios, o Teatro Horta. Segundo Calixto Marques (2005, p. 51), ― o objetivo era fazer da atividade artística, especialmente a teatral, um caminho que retirasse as crianças e adolescentes da periferia da situação de risco. (...) O grupo se desfez devido a divergências internas que emanaram nas discussões a respeito dos objetivos de suas representações cênicas. Alguns integrantes achavam que o grupo deveria se especializar na linguagem artística, desenvolvendo trabalhos mais efetivos de preparação de ator e refinamento da cena. Outros acreditavam que a finalidade principal do grupo deveria ser a defesa de questões políticas. A disputa interna acabou provocando uma cisão, desmembrando o grupo em dois novos: o Cirkistilo e o Apuí. Os integrantes que se preocupavam com questões formais do teatro, passaram a integrar o grupo Cirkistilo. O grupo Apuí marcou uma volta às discussões relacionadas às Comunidades Eclesiais de Base, retomando as produções direcionadas às periferias da cidade de Rio Branco” (MELO, 2010).

Outro grupo de relevância na cena da época e para a história do teatro acreano é o Grupo De Olho Na Coisa, de onde vem o diretor “Matias”, atualmente homenageado pelo “Festival Matias de Teatro de Rua”, que ocorre no Estado, com a participação de grupos locais e nacionais.

Grupo De Olho Na Coisa. Essa é uma formação de longa trajetória no teatro acriano, uma vez que esteve presente nas práticas artísticas de Rio Branco desde o início da década de 1970 e mantém-se até hoje. A grande figura desse grupo era o seu diretor, José Marques de Souza – o Matias. Matias montou o grupo e esteve em sua direção até falecer, com 61 anos de idade, em abril de 1997, quando, então, o grupo passou a ser dirigido pelo seu filho Cláudio Matias. Com formação apenas pelo Mobral e nenhum contato com texto de teatros de outras localidades, a forma encontrada por esse autor passa essencialmente pela narrativa e como ocorre com a maior parte de textos produzidos nesse período de nossa pesquisa, pelo fio didático. Matias foi um seringueiro, poeta e contador de histórias. Escreveu diversas peças, nas quais evidenciava suas preocupações sociais com a população local. (...) Em uma segunda fase, o grupo dirigido pelo ex-seringueiro Matias segregou-se da Comunidade Eclesial de Base, instituindo, oficialmente, o Grupo De Olho na Coisa. Esse momento teve sua maior expressão na década de 1990 e marcou uma pesquisa mais específica dessa formação no tocante à linguagem teatral. Nesse período, o grupo conseguiu financiamento para construir o Teatro Barracão, um símbolo representativo do grupo e um espaço, efetivo, de mobilização artística. O local em que foi edificado esse teatro estava destinado à construção de um hospital público, em uma área que foi considerada insalubre. Silene Farias, presidente da FETAC na época, conta em depoimento a um jornal local que decidiu, junto a alguns colegas, construir o prédio destinado a um teatro com verba concedida pelo Instituto Nacional de Arte Cênica e destinada à FETAC (Zílio, 2004). O Barracão foi, então, construído em uma periferia da cidade de Rio Branco, o que, em parte, dificultava o acesso ao espaço, mas que tornava, contudo, o movimento teatral mais próximo das comunidades periféricas, um princípio básico para a maioria dos coletivos atuantes na época no tocante à utilidade do teatro. Como o teatro encontrava-se instalado próximo do lugar de atuação do De Olho Na Coisa, esse grupo acabou sendo o principal utilizador do espaço, realizando, nesse teatro, grande parte de suas práticas sociais. ―Foi na efervescência do trabalho de resgate do teatro na cidade [de Rio Branco] que se conseguiu com que Matias e Valério fossem contratados para trabalharem no Barracão e que duas casas fossem construídas para ambos atrás do prédio. Em 1997, a revista Aquiri registrou que o Grupo De Olho na Coisa já havia expandido, desde sua constituição como Grupo Baía, na década de 1970, suas atuações para outras e mais aprimoradas experiências artísticas. O grupo desenvolveu, durante a década de 1990, projetos de oficinas artes-educativas, oficinas de iniciação circense, capoeira, produção de máscaras teatrais, entre outras. As intervenções do grupo haviam, também, sido transpostas para outros espaços teatrais da cidade, tais como praças e igrejas, chegando a ocorrer encenações dentro de ônibus públicos. Exemplos de espetáculos apresentados pelo Grupo de Olho na Coisa, nesse período, foram as peças O Clamor da Floresta, A vida na Floresta, O Homem que Vendeu a Sua Alma, entre outros” (MELO, 2010).
           
            Como de costume do fazer teatral, alguns grupos já saíam em circulação com seus espetáculos pelo interior do Estado e fora do mesmo.

4.         Atualmente

            Já no século XXI, poucos dos grupos mais antigos mantiveram sua formação e muitos outros foram formados. Os interesses das produções teatrais ultrapassam o teatro engajado e emerge uma preocupação com questões técnicas, estéticas, de pesquisa e de preparação de atores.
            Atualmente, o movimento teatral dispõe de políticas culturais como a criação de Leis de Incentivo à Cultura, na cidade de Rio Branco, bem como a Fundação Cultural do Estado – criada na década de 1970, com a Lei de Incentivo à Cultura que beneficia atividades artístico-culturais, nos eixos de criação, produção, formação, memória, circulação, leitura, conservação, difusão e eventos; além dos Conselhos de Cultura, incentivados pelo até então Ministério da Cultura, promovendo uma participação democrática na elaboração e execução de políticas públicas culturais.
            Atualmente existem aproximadamente 23 grupos teatrais organizados no Estado do Acre, em sua maior parte instalados na capital Rio Branco. Alguns desses grupos são: Grupo de Olho na Coisa, Cia. Trupe do Banzeiro, Grupo de Teatro e Circo Palhaço Rufino e Sua Turma (GPRT), Grupo Orákulos, Grupo Guaratuja, Grupo Vivarte, Companhia Vice Versa, Grupo El-Shadai, Grupo Attos, Teatro Popular do Acre, Grupo Nauart, entre outros.
            A FETAC, a Usina de Artes João Donato, o Serviço Social do Comércio do Acre – SESC/AC, a Fundação de Cultura Elias Mansour, a Universidade Federal do Acre, são instituições de grande importância para a cena local, proporcionando espaços e financiamento para o desenvolvimento de ações artísticas, na pesquisa, formação e difusão do teatro no e do Acre.

Considerações finais
                                   
            É possível identificar certas características no movimento teatral do estado do Acre desde seu surgimento, como a preocupação em uma produção engajada em questões sociais dialogando com a realidade local, bem como a intenção de se estabelecer e discutir uma identidade local, como forma de afirma-se e resistir diante da constante marginalização cultural e econômica que a Região Norte sofre, especificamente o Acre, um dos extremos geográficos do país.
            Quem se guia por esses preconceitos para imaginar a cena artística do Acre com certeza surpreende ao deparar-se com a realidade tão rica, forte e efervescente da cena acreana, que apesar de sofrer com as questões econômicas – presente na maioria, senão em todos os estados brasileiros – para manter-se, existe e resiste enquanto voz de um povo que sabe seu valor e espaço no mundo.

Referências

MARQUES, Maria do Perpétuo Socorro Calixto. Recepção do teatro político em terras amazônicas. <Disponível em: https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/abrace/article/view/3337>

MELO, Elderson Melo. Teatro de grupo no Estado do Acre: Trajetória, prática e inserção do estilo regional (1970-2010). Campinas - SP, 2010. < Disponível em: https://pt.slideshare.net/EduardoCarneiro1/meloelderson-melode-teatro-de-grupo-no-estado-do-acre-a-insero-do-estilu-regional-19702010>

MELO, Elderson Melo. O teatro de grupo no Acre: uma história a se escrever. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. Fortaleza, 2009. <https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548772190_601c48addb988abe579ae7daad3a8827.pdf>