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quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Sobre pássaros e prisões simbólicas



Adailtom Alves Teixeira[1]

Fabiano Barros, dramaturgo, diretor e gestor cultural com passagem pelo SESC e SEJUCEL, tem dado sua contribuição para a cena portovelhense desde que chegou de Pernambuco, ainda bem jovem. Criou em 2001 a Cia de Artes Fiasco e com ela vem pesquisando o que chama de “humanização dos mitos e lendas amazônicos”.

No último sábado, dia 16 de novembro de 2019, assisti seu último trabalho (autoria e direção), Onde morrem os pássaros?, interpretado por Artur Neto e Laura Martins. A trilha sonora foi composta e é executado ao vivo por Rinaldo Santos. Antes do espetáculo o público pode contemplar ainda uma exposição do artista Flávio Dutka.

A obra Onde morrem os pássaros? parece ser uma mudança na pesquisa que o autor vinha realizando, do ponto de vista temático e formal - ainda que continue com a ausência de palavra -, já que flerta com a estética surrealista, que tem como características a reação ao racional, forte influência da psicanálise, criação de uma realidade paralela e valorização do inconsciente.
Foto divulgação.

O mundo surreal e inconsciente criado por Fabiano Barros parece apontar pra uma discussão do que pode vir a ser o mal do século, a depressão e outras doenças psíquicas. Como afirma o filósofo Byng-Chul Han em seu livro Sociedade do cansaço (2017), “Cada época possui suas enfermidades  fundamentais” e o século XXI será o século das doenças neuronais: depressão, Síndrome de Burnout, transtornos de personalidades, entre outras. O espetáculo em tela dialoga com esse universo.

Em relação as questões do universo psíquico, creio que as duas críticas escritas até agora sobre o trabalho dão conta e há certo acordo, por isso remeto o leitor às mesmas. Estou me referindo ao que escreveu Luciano Oliveira (aqui) e Édier William (aqui). No que tange à montagem, sim também há certo acordo: é bem cuidada e limpa; partituras corporais claras e repetitivas, para tornarem explícito a monotonia das personagens - logo, os atores estão bem em suas execuções; boa trilha sonora; luz muito simples, porém funcional.  No entanto, parece-me, que um aspecto importante ficou de fora das apreensões críticas e é sobre isso que gostaria de dialogar.

Se o espetáculo no geral aponta para o surreal, sobretudo a personagem que está presa por uma repetição cotidiana de gestos e ações, levando-o a uma condição depressiva e/ou melancólica nessa gaiola-mundo de seu interior, a personagem feminina, a mulher, nos parece, que pode ser olhada por um viés realista e, por isso mesmo, muito mais cruel. É preciso lembrar que ela é colocada posteriormente em um mundo já dado, o mundo do depressivo, portanto, ela tem consciência daquela realidade. No entanto, sua condição é de total subalternidade ao sujeito-homem: é posta para servir. Desse ponto de vista nos parece equivocado, já que não se trata de uma relação construída anteriormente entre eles, mas de algo dado. Assim, a mulher fica inferiorizada em relação ao homem, não só por ter que realizar todas as tarefas domésticas, sem jamais questionar, mas por ser levada a esse mundo sem sabermos se é por querer, se é uma profissional, parente etc. Nada é explicado, assim o que salta aos olhos é apenas a subserviência da figura feminina. Nos parece que esse é o ponto crítico da obra.

Caberia perguntar: se fosse a mulher a depressiva e o homem viesse para lhe auxiliar daria a mesma leitura? Talvez não. E se fosse duas pessoas do mesmo gênero? É provável que também não. Se estamos tratando de questões importantes do século XXI, como as doenças psíquicas, talvez outras questões prementes de nosso tempo, como a de gênero, não devam ser ignoradas. Afinal, como afirma Ângela Davis em Mulheres, cultura e política (2017) (em um texto que está abordando justamente a questão de saúde), “A política não se situa no polo oposto ao de nossa vida. Desejemos ou não, ela permeia nossa existência, insinuando-se nos espaços mais íntimos”.

A afirmação da autora estadunidense nos leva a refletir sobre outro ponto: até aqui o debate público tem sido feito apenas por homens, o autor, por meio de sua obra, e os três críticos e suas apreensões. Talvez novas contradições apareçam ou pontos de vistas sejam referendados à medida que tivermos as mulheres também debatendo.



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista; integrante do Teatro Ruante; coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão em Crítica Teatral; e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

O voo de brilhantes pássaros artistas



Édier William[1]

Palavras, por meio delas acreditam alguns que o universo foi construído e é por meio delas que o mundo gira. Palavra no livro, palavra no copo, no rádio, no céu. Palavra escrita, palavra falada, cantada. São as palavras que contam a vida e inventam histórias.
Saber usar as palavras para criar histórias, no entanto, pode ser considerado um dom que poucos têm. Uma história mal contada é como comer um banquete sem tempero, ouvir uma música sem poesia... Agora imagine saber contar uma história sem usar um único fonema. É exatamente assim que “Onde morrem os pássaros” é encenada, sem palavras. Assisti esse espetáculo em sua estreia no Teatro 1 do Sesc Esplanada.

Saber contar uma história por meio de imagens e movimentos no teatro, talvez seja uma das coisas mais difíceis. Poucas vezes assisti algum espetáculo com essa proposta que tenha conseguido metade do que Fabiano Barros, dramaturgo e diretor do espetáculo, conseguiu.
O espetáculo reflete sobre um dos maiores males desse século, a depressão. Um homem, interpretado pelo ator Artur Neto, mergulhado em solidão vive em uma rotina monótona e surrealista, que aos poucos vai submergindo o espectador em uma profunda melancolia poética. Em dado momento uma mulher, Laura Martins, surge para trazer um pouco de vida para o homem, mas é rejeitada por diversas vezes, ela tenta ajudá-lo a sair do fundo do posso do looping em que entrara, sem sucesso.
Trazendo para nossa realidade é como estar presenciando no palco uma pessoa que acorda e não tem forças para se levantar da cama, está aprisionada ao celular, à TV, ao quarto. Uma pessoa que sai do quarto para fazer o xixi que não tem, pois não bebeu água, para comer o que não tem na geladeira, pois não saiu para comprar nada, que volta ao quarto e coloca uma música que não ouve, pois está perdido na timeline de alguém que não conhece, desejando ter algo que nunca terá sem se levantar para trabalhar.
Há genialidade na forma que Fabiano Barros conta a história juntamente com os não menos geniais atuadores. É necessário ressaltar que a dramaturgia sonora que ficou a cargo de Rinaldo Santos é espetacular, consegue causar inúmeras sensações na alma e na carne dos espectadores. A única ressalva sobre a música é a sua execução ao vivo, à mostra, ao lado do cenário, isso desvia um pouco da concentração de alguns espectadores.
Foto divulgação.
A iluminação e cenografia são clássicas, uma escolha do diretor que funciona, mas poderia trazer mais impacto se fossem contemporâneas, já que o espetáculo aborda questões extremamente atuais.
Um espetáculo, durante sua jornada de apresentações, passa por um processo de amadurecimento, esse espetáculo, que já nasceu maduro, poderá se tornar ainda mais impactante, conforme o ritmo for melhor definido e o espetáculo, que teve mais de uma hora e vinte minutos, se torne preciso quanto ao que precisa ser dito por meio dos movimentos em cena.
Onde morrem os pássaros? Assista e descubra, ou quem sabe fique com ainda mais dúvidas, mas tenha certeza de que assistirá uma obra de arte incrível!


[1] Édier William Medeiros da Silva, graduado em Letras, FIAR (2012), Especialização em Metodologia do Ensino Superior, FAEL (2016), Técnico em Produção Audiovisual, CEP (2015). É escritor, dramaturgo, ator, diretor e produtor cultural.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Cláudia Silva Ferreira



Jamile Soares[1]

No dia 15 de setembro de 2019 ocorreu no Teatro 1 do Sesc Esplanada de Porto Velho, dentro da programação do Festival Palco Giratório, a apresentação do espetáculo A Mulher Arrastada, projeto idealizado por Diones Camargo, dramaturgo, que soube criar e costurar de forma coerente o texto teatral trazendo o devido incômodo que tal temática deve trazer. Diones teve como parceira  Adriane Mottola, encenadora com mais de trinta anos de carreira e fundadora do grupo UTA - Usina do Trabalho do Ator da Cia Stravaganza (grupo teatral de Porto Alegre).
A Mulher Arrastada, Teatro 1 do Sesc. Foto Raíssa Dourado.

O espetáculo tem como ponto de partida o assassinato de Cláudia Silva Ferreira, mulher negra, moradora do morro da Congonha do Rio de Janeiro, 38 anos e que foi baleada por policiais militares ao sair de casa para comprar pão para os filhos. Após ser baleada, Cláudia foi rapidamente jogada no camburão da viatura policial que partiu acelerado. Durante o caminho a porta do camburão abriu e Cláudia, mesmo presa, foi projetada para fora sendo arrastada por 350 metros, fato que resultou em sua morte.

Logo no início do espetáculo nos deparamos com objetos de cena em cima de dois palcos pequenos, com um carro de polícia de brinquedo, um frigobar com uma cerveja dentro e um homem branco, vestido de policial militar. A disposição espacial não foi muito favorável ao público, que em sua maioria não conseguiu ver o que ocorria na cena. Além disso, várias falas do ator não foram escutadas, devido ao tumulto e também pela falta da devida projeção vocal necessária para o ambiente escolhido.

Quando vou ver a mulher negra em cena? A resposta veio logo em seguida, quando surge a figura de uma mulher negra nos conduzindo para adentrar o universo das que vivem á margem. Logo descobrimos que é Cláudia Silva Ferreira interpretada por
Atriz Celina Alcântara. Foto Raíssa Dourado
Celina Alcântara com uma interpretação forte, necessária para uma história tão impactante. A atriz por vezes utiliza de gritos para expressar a indignação de um corpo assassinado pelas mãos do Estado e que não teve nem seu nome e nem seu corpo respeitado; mulher negra que representa tantas outras que são arrastadas e invisibilizadas pela sociedade.

As vidas da população negra, principalmente periférica, como no caso de Cláudia, são descartáveis aos olhos do Estado, representado no espetáculo por um policial branco que confessa seus atos mas não sabe explicar o motivo de tais atitudes, simplesmente deixa claro que esses fatos acontecem como devem acontecer, é tudo parte da estrutura da sociedade opressora. O policial em questão é interpretado pelo ator Pedro Nambuco, que soube demonstrar através da sua atuação a apatia, descaso e frieza do sistema policial com a população negra.

A sonoplastia é muito bem executada, com músicas que apresentam uma distorção, nos provocando uma sensação de incômodo, algo que a obra artística tem como proposição. Outros elementos, além da sonoplastia, se somam para criar o incômodo no espectador, como o texto teatral, a interpretação cheia de silêncios e gritos, e o cenário, que lembra um matadouro.

A história é apresentada não de forma linear mas fragmentária e usando o corpo de Cláudia como um corpo significante da sociedade em que vivia, como na parte em que atriz fala: “O aparelho reprodutor é a minha sentença”; utiliza também o elemento da repetição, com intensificação das intenções, conforme determinadas falas vão sendo repetidas. O espetáculo trabalha em um crescente chegando a muitos momentos de extrema indignação, um grito característico de um espetáculo manifesto.

A obra artística possui como estética teatral a linguagem do teatro performativo, pois tem como prioridade a apresentação de uma história, de um corpo representativo de vários corpos de mulheres negras. Por mais que a intenção principal seja retratar os últimos momentos de vida de Cláudia, fica claro que não se trata apenas da personagem em questão, mas da  apresentação de uma realidade, com uma mulher negra em cena e um homem branco apresentado e representando o sistema corporativo policial.

Essa Mulher Arrastada tem nome, tem uma história que deve ser respeitada e uma justiça que ainda precisa ser feita. Até quando tantas mortes negras e periféricas vão ser escondidas e injustiçadas pela máscara do Estado?

Cláudia da Silva Ferreira. Presente!

Justiça para vidas negras. Ausente!



[1] Acadêmica do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia. Atriz nos espetáculos: CIDADE GRANDE, joão ninguém (Grupo Peripécias/UNIR), Era uma vez João e Maria... e Ainda é, Cabaré Ruante, A muy lamentável e cruel história de Píramo e Tisbe (Teatro Ruante) e Inimigos do Povo (Trupe dos Conspiradores).


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Tão longe e tão perto


Stephanie Caroline Matos Dantas[1]

O que significa Seridó? Para algumas pessoas, uma região localizada no sertão do Rio Grande do Norte, para outras, nada. Para mim um lugar familiar que nunca conheci.
Titina Medeiros e Nara Kelly. Foto Raíssa Dourado.

No dia 25 de setembro, dentro da programação do Festival Palco Giratório, ocorreu a apresentação do espetáculo Meu Seridó, no Teatro 1 do Sesc. Meu Seridó é o primeiro espetáculo da produtora Casa de Zoé. A produtora e o espetáculo foram idealizados pela atriz Titina Medeiros, que teve o desejo de montar um monólogo que contasse a história do Seridó, região natal da atriz.  Porém a ideia transformou-se em um espetáculo com três atores e duas atrizes em cena: Titina Medeiros, Nara Kelly, Caio Padilha, Marcílio Amorim e Igor Fortunato que a cada cena interpretam diferentes personagens que dão vida à história do Seridó. O espetáculo tem a direção de César Ferrario e dramaturgia de Filipe Miguez.

De forma lúdica e cômica, por meio da estética do teatro popular nordestino, vamos conhecendo a origem do Seridó. Ao contar sobre a história dessa região, o espetáculo acaba falando também sobre o processo de colonização do Brasil.
Caio Padilha, que também assina a direção musical.
Foto Raíssa Dourado.

A música é um elemento marcante em toda a encenação, cantada e tocada ao vivo pelo elenco. São canções divertidas e poéticas que ficam gravadas em nossa mente. Às vezes, pego-me cantando a música da Rádio Difusora de Caicó ou dos três portugueses.

Por falar em rádio, uma das cenas mais encantadoras e divertidas, ao meu ver, foi a radionovela. Nesta cena, os locutores da Rádio Difusora de Caicó narram a história amorosa de Josefa e Caetano Dantas Correio, enquanto duas atrizes dublavam e encenavam a história. Fiquei encantada pela forma como fizeram, pois, a radionovela era transmitida nas rádios, onde se utilizava apenas a voz e a imagem ficava a cargo da imaginação do ouvinte. A proposta de ter narração e imagem, foi uma escolha certeira por parte da direção.

Assistindo ao espetáculo tive uma sensação de familiaridade, de conhecer o Seridó mesmo sem nunca ter colocado os pés nesta região. Deve-se isso ao fato de que a história contada é a nossa história e também porque a encenação foi tão bem-feita que viajamos ao Seridó em uma hora de espetáculo e voltamos sentindo saudades desse lugar mágico que está tão longe e ao mesmo tempo tão perto de nós.
Elenco de Meu Seridó. Foto Raíssa Dourado.

A montagem de Meu Seridó foi possível devido a Lei Djalma Maranhão (lei de incentivo à cultura, criada e promovida pela a Prefeitura de Natal) e graças ao projeto Palco Giratório, o espetáculo circulou por vários estados do Brasil. Ressalto que políticas públicas e projetos como Palco Giratório são necessários e importantes, pois nos afeta diretamente, assim como afetou o público de Porto Velho que saiu do teatro tendo um novo olhar sobre o sertão nordestino.


[1] Aluna do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Participante do Grupo de Pesquisa e Extensão em Crítica Teatral. Atuou como atriz nos espetáculos: Inimigos do Povo da Trupe dos Conspiradores e CIDADE GRANDE, João Ninguém do Grupo Peripécias (DArtes/UNIR).


terça-feira, 22 de outubro de 2019

Meu Seridó



Maycon Moura[1]
        
         A peça teatral Meu Seridó, teve como ideia inicial de Titina Medeiros (que faz parte do elenco), uma homenagem à sua cidade. A montagem do espetáculo durou cerca de 9 meses e possui como base a biografia de Seridó, sertão do Rio Grande do Norte. O elenco é composto por: Titina Medeiros, Nara Kelly, Caio Padilha, Marcílio Amorim e Igor Fortunato, com produção do grupo Casa de Zoé (RN). Direção de César Ferrario (que também opera o som), dramaturgia de Filipe Miguez, direção de arte de João Marcelino, direção musical de Caio Padilha, pesquisa de Leusa Araújo, designer de luz feito por Ronaldo Costa, cenotécnica de Rogério Ferraz, operação de luz de Janielson Silva e Ronaldo Costa, técnico de montagem, Sandro Paixão.

A sincronia e a sintonia entre os atores, o jogo com o público, o time cômico, o trabalho corporal e a atuação também ajudam e muito na composição da história. O texto é muito bem estruturado, nota-se uma pesquisa profunda para dar base à montagem do espetáculo, baseado na cultura seridoense.
Foto Raíssa Dourado.

         Os figurinos, são muito bem trabalhados de acordo com cada ator e com os movimentos pensados de cada personagem, há momentos em que a troca de figurinos ocorre assumidamente no palco, durante a peça, sem prejudicar ou quebrar a cena, deixando o espetáculo mais rico.

         Os objetos cênicos, ora são cenários, ora são simples objetos. O grupo trabalha com a ressignificação dos elementos cênicos, as molduras, que fazem parte do cenário desde o início, por exemplo, fazem parte deste jogo cênico. Vale ressaltar a iluminação, singela, porém, deixando a composição de cena mais fotográfica. Grande parte da sonoplastia, executada ao vivo, tanto nos momentos em que se quer transmitir a ideia do som das rádios antigas, quanto nas partes cantadas da peça, é também destaque, pois além de rica, demonstra a versatilidade dos intérpretes.
Elenco de Meu Seridó. Foto Raíssa Dourado.

         A imersão do público é notória; falas do texto que fascinam e ao mesmo tempo nos fazem refletir e conquistam a todos. Frases como “A gente é feito de dor” ou “A arte molda a sociedade”, aliadas aos demais elementos cênicos não deixam que ninguém desgrude os olhos, ouvidos e todos os sentidos até o fim da peça. Mesmo as crianças presentes ficaram atentas a cada cena.

Desse modo, o espetáculo conseguiu comunicar-se com todas as faixas etárias. A riqueza de detalhes trazida pelo grupo foi tão grande que fez com que todos que viram uma vez, queiram ver de novo.


[1] Maycon Douglas Pereira de Moura: Nascido em Vilhena – RO, 25 anos, Graduado em Letras  - Língua Portuguesa (2018), pela Faculdade Metropolitana e mestrando em Literatura pela Unir. Designer gráfico, editor de vídeo, palhaço e ator. Participou do Grupo de Teatro Wankabuki de 2013 a 2017. Atualmente integrante do Grupo de Teatro Ruante.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

“O teatro é o extrato da cultura de um povo”



Jamile Soares[1]

No dia 10 de Setembro de 2019, ocorreu, durante o Festival Palco Giratório na cidade de Porto Velho, o espetáculo Traga-me a cabeça de Lima Barreto, baseado na biografia de Lima Barreto (jornalista e escritor negro, filho de ex-escravos) O autor apresenta em seus livros a realidade de um país imerso no racismo durante o século XX, mas que perdura até hoje.

No espetáculo fica notável o uso tão inspirador das palavras, cada uma delas mastigada e deliciada com maestria pelo ator. O dramaturgo Luiz Marfuz, trouxe no seu texto elementos biográficos da vida de Lima Barreto, informações sobre os livros do autor e elementos históricos sobre a eugenia, racismo e genocídios da época.
Hilton Cobra. Foto Raíssa Dourado.

A direção é exercida por Fernanda Júlia, mulher negra, mestra e doutoranda em Artes Cênicas, Professora da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia e fundadora do Núcleo Afro Brasileiro de Teatro de Alagoinhas, responsável por diversos trabalhos com a temática da negritude.
Logo que o público entra no teatro se depara com um cenário cheio de referências, como livros de Lima Barreto, uma bebida alcoólica e um ambiente repleto de palavras ligadas à temática do espetáculo, bem como um objeto que esconde o cérebro de Lima Barreto – feito com búzios, referência à matriz-religiosa africana. A história se passa durante um Congresso dos Eugenistas que farão a autópsia do cérebro de Lima Barreto, com vozes em off fazendo perguntas e escancarando as ideias absurdas dessa pseudociência.

A própria imagem do ator Hilton Cobra já traz uma poética reivindicatória por sua representatividade como homem negro. Sua atuação vem cheia de técnica: dicção perfeita, trabalho corporal impecável e uma verdade absoluta nas suas emoções – o que faz o público se emocionar, seja por ser negra ou negro e sentir na pele a dor de uma sociedade repleta de racismo, seja por empatia à situação da negritude ou mesmo pelo choque de realidade a que são submetidos.

A obra teatral é claramente um grito de protesto aos moldes épicos brechtianos, com songs (músicas utilizadas como comentários, como parte do texto ou com função narrativa), palavras de Lima Barreto e do próprio ator que traz inserções atuais e quebra da quarta parede – que quase não existe em um espetáculo tão próximo ao público. Ator e público, dividem a pinga e a indignação pela desvalorização do trabalhador negro. De acordo com o espetáculo, Lima Barreto queria ter seu trabalho reconhecido, mas graças a sua cor e aos assuntos abordados em suas obras foi rechaçado, por ser considerado uma “mente inferior”.

A pergunta base do espetáculo consiste em: “Como um cérebro de raça inferior poderia ter produzido tantas obras literárias- romances, crônicas, contos, ensaios- se o privilégio da arte e da boa escrita é das raças superiores”? Lima Barreto tentou por três vezes ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, mas não conseguiu, deixando-o frustrado e indignado com o racismo eugênico escancarado. Fazendo um paralelo com a atualidade, temos Conceição Evaristo, mulher negra e autora de livros que trata da questão da negritude. A autora também foi preterida pela Academia, não é possível saber os reais motivos, mas sabe-se que a instituição é formada em sua maioria por homens brancos. Então, cabe a pergunta: o que mudou? Anos depois e as histórias continuam as mesmas.
Hilton Cobra como Lima Barreto. Foto Raíssa Dourado.

O espetáculo apresenta como estética a linguagem do Teatro Documentário, com o uso de documentos que serviram de base para toda estrutura da obra artística. Os documentos em questão tratam sobre as teses eugenistas e sobre os defensores da mesma, fazendo um recorte histórico sobre o Movimento Eugenista que ocorreu no início do século XX e que defendia a limpeza da raça, a predominância da raça dita superior que se limitava a homens brancos e mulheres brancas sem nenhum tipo de deficiência. Ainda assim, essas mulheres eram vistas apenas como boas procriadoras.
Como pode um espetáculo baseado em teses eugenistas que ocorreram durante o século XX ser tão atual e necessário? A resposta é dura: o racismo continua impregnado na sociedade brasileira, sendo as negras e negros ainda tratados como raça inferior, tendo menos oportunidades de trabalho, de estudo e sendo assassinados por um Estado que deveria protegê-los.

Por fim, termino essa crítica com uma fala do ator Hilton Cobra interpretando Lima Barreto: “Parto para o outro lado do Atlântico. Oxalá além daquela curva luminosa possa eu rever os meus ancestrais. Eu já não posso mais cumprir a minha promessa, concluir a história do povo negro no Brasil, mas outros com certeza o farão”.

Viva a negritude e sua resistência!


[1] Acadêmica do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia. Atriz nos espetáculos: CIDADE GRANDE, joão ninguém (Grupo Peripécias/UNIR), Era uma vez João e Maria... e Ainda é, Cabaré Ruante, A muy lamentável e cruel história de Píramo e Tisbe (Teatro Ruante) e Inimigos do Povo (Trupe dos Conspiradores).

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A MEMÓRIA DE UM DEUS EXUMADA POR OUTRO DEUS



Édier William[1] 

IM-PE-CÁ-VEL! Não tem como iniciar uma análise sobre esse monólogo sem conferir ao espetáculo esse status
É claro que deveria haver de minha parte uma certa imparcialidade na escrita deste texto. Todavia, Traga-me a cabeça de Lima Barreto é, talvez, uma das obras que mais me impactaram em toda a minha existência nessa ou nas vidas passadas das quais não me lembro. Tal impacto surge pela atuação inquestionável e ao extremo elogiável de Hilton Cobra, que é uma das maiores referências do teatro representativo dos negros na atualidade, e pela abordagem do espetáculo que por vários momentos nos faz questionar em que momento da existência o ser humano perdeu sua humanidade, ou se um dia ela a teve.
Hilton Cobra como Lima Barreto. Foto Raíssa Dourado.
Hilton Cobra, um homem/deus/ator de um pouco mais de um metro e meio de altura, agiganta-se ao exumar a consciência de Lima Barreto e a incorporada em si. Lima Barreto é o maior autor assumidamente negro da literatura Clássica Brasileira. É claro que, como todo mundo sabe e o próprio Lima Barreto assume no palco, neste monólogo, o maior escritor brasileiro é Machado de Assis que, por coincidência, era preto, e digo coincidência, pois Machado não se assume preto em sua obra e a elite brasileira o embranquece para que possam consumir suas escrituras. Bem, não estamos aqui para falar de Machado.
Por meio do pequeno homem, gigante ator, uma entidade se materializa no palco, deixando a plateia em choque por tomar nota do que muitos ainda não sabiam, os eugenistas foram/são reais - ainda que nos dias atuais pareça absurdo o conceito pregado pela eugenia, um dia fora objeto de argumentação de muitos teóricos para endossar seus preconceitos contra os negros ao afirmarem que negros são cognitivamente inferiores aos brancos. 
O espetáculo se passa em uma espécie de sala do purgatório, do céu, do inferno, ou simplesmente da memória de Lima Barreto, viva perpetuamente em sua obra inesquecível e indestrutível. Do piso e paredes brancas saltam palavras. Duas caixas de som que são personificadas durante o espetáculo, respondendo, perguntando, acusando e julgando o autor-personagem. Uma cadeira, uma cesta, cachaça e livros. É nesse cenário, à primeira vista simples, mas muito bem explorado, que é encenado um dos melhores textos da atualidade - e aqui cabe muitos elogios à direção do espetáculo, à iluminação e à sonoplastia, que não deixaram de usar nenhum milímetro do que tinha para ser explorado do texto, do ator e do cenário.
Foto Raíssa Dourado.
No decorrer do espetáculo - que brinca em ser clássico e contemporâneo, com muitas marcações que são executadas com precisão - alívios cômicos, provocados pelas interações com a plateia. Os alívios vindos com os risos, são muletas para que o público segure a emoção - que por vezes precisou usar os dedos, lenços, ou camisetas para secar os olhos, para conseguirem chegar ao fim do espetáculo e virem Lima Barreto no auge de seu confortável e merecido descanso com a glória de um deus. 




[1] Édier William Medeiros da Silva, graduado em Letras, FIAR (2012), Especialização em Metodologia do Ensino Superior, FAEL (2016), Técnico em Produção Audiovisual, CEP (2015). É escritor, dramaturgo, ator, diretor e produtor cultural.


domingo, 13 de outubro de 2019

Do Pôr do Sol ao cair da noite

Stephanie Caroline Matos Dantas¹

No dia 07 de setembro, ocorreu no Parque da cidade, a abertura do Palco Giratório. O Palco Giratório é um importante festival de artes cênicas realizado pelo Serviço Social do Comércio (SESC).  O espetáculo convidado para abrir a programação, foi O Palhaço de la mancha, da Cacompanhia de Artes Cênicas, coletivo que atua em Manaus desde 2017, realizando espetáculos teatrais e a arte da palhaçaria.
Cacopanhia. Foto Raíssa Dourado.
O Palhaço de La Mancha retrata a obra clássica de Miguel de Cervantes (1547-1616): Dom Quixote, na ótica da Palhaça Pãobolo (Stephane Bacelar) e dos Palhaços Caco (Jean Palladino) e Numadi (Richard Harts). O trio se aventura entre moinhos, cataventos e batalhas, proporcionado pela magia literária de Cervantes e pela comicidade, loucura e lógica do palhaço e da palhaça.
O espetáculo é dirigido por Jhon Weiner, professor da Universidade Estadual do Amazonas. A direção propõe que o espetáculo, sempre que possível, seja apresentado ao pôr do sol, para simbolizar o descanso de Dom Quixote. Sua morte se daria quando o sol já não brilhasse mais.
Ainda no elenco, temos Francine Marie responsável pela execução da música e também assina, juntamente com Paulo Tiago, a concepção dos adereços. A percussão é interessante e bem executada. Porém, em alguns momentos, os palhaços e a palhaça não estavam no mesmo tempo da música, havia desencontros.
Vale ressaltar o trabalho de Dione Maciel, responsável pela concepção dos figurinos: belíssimos e nos remete aos tempos antigos.
A interação com o público, no meu ponto de vista, foi pouca. Acredito que os palhaços e a palhaça poderiam receber o público quando eles estivessem chegando, interagindo com os mesmos. Faz-se necessário trabalhar melhor a triangulação. Em vários momentos, Caco, Numadi e Pãobolo ficavam fechados entre si e não abriam a cena para o público. É importante no teatro de rua a relação que se estabelece, por meio da triangulação, entre ator/atriz e público.
O Palhaço de La Mancha é um espetáculo novo, que teve sua estreia em 2018, por isso precisa ser apresentado mais vezes para ganhar ritmo e assim poder observar o que funciona e o que não funciona na relação com o público. O espetáculo tem questões importantes a serem ditas. Quando Sancho Pança relata os seus medos para Dom Quixote, é uma cena muito poética e tocante.
Foto Raíssa Dourado.
O espetáculo trouxe-me a reflexão sobre a importância da utilização do gênero feminino. Muitas vezes, utilizamos as palavras apenas no gênero masculino. Quando nomeamos um grupo de pessoas no masculino, que contém mulheres e homens, acreditamos que ao fazermos isso, estamos mencionando as mulheres desse grupo. Porém a estamos excluindo. Segundo o Manual para o uso não sexista da linguagem, disponível na internet, “Para que a mulher esteja representada é necessário nomeá-la”. Quando a palhaça Pãobolo e Francine enfatizam durante o espetáculo as palavras no feminino: “palhaça”, “mercadora”, “senhora” e “taberneira”, me senti representada e reflexiva a respeito. Ressalto a importância de manter esta proposição do início ao fim do espetáculo.
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¹ Discente do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia. 

sábado, 12 de outubro de 2019

Agreste ou das durezas e delícias das boas histórias


Adailtom Alves Teixeira[1]

Nascido a partir de um exercício proposto na universidade, o espetáculo Agreste do coletivo Barulho do Acre, nos lembra que somos feitos também de boas histórias. O espetáculo foi apresentado dia 09 de setembro de 2019 no Teatro 1 do Sesc Rondônia, dentro da programação do Festival Palco Giratório, na cidade de Porto Velho. O espetáculo nos transportou para um nordeste que, talvez, não mais exista, ainda que o que foi contado seja recorrente em todo o país. Trata-se de uma história de amor. Ainda assim, há “algo no amor deles que não devia acontecer”.

Essa não é a primeira montagem do texto primoroso do pernambucano e radicado em São Paulo, Newton Moreno. A montagem realizada pelo grupo Razões Inversas (SP), lhe rendeu os prêmios Shell e APCA de melhor texto, além de projeção nacional, na excelente direção de seu ex-professor Márcio Aurélio. A história de amor de duas pessoas humildes é linda, enquanto “permitida socialmente”. Aí está a grandeza do texto: por meio de algo simples e cotidiano, descortina os preconceitos e as maldades de uma sociedade. Escrito em uma mistura de cultura popular e tons de erudição, a história de amor de um casal que viveram juntos por 22 anos em perfeita união e, aparentemente, eram benquistos por todos até descobrirem algo sobre suas sexualidades.
Matheus Filgueira. Foto Raíssa Dourado.

A montagem do Barulho do Acre, com direção de Sandra Buh[2], é minimalista. Aposta totalmente na palavra, para que a história pule aos nossos ouvidos. A direção musical, a cargo de Écio Rogério – que executa ao vivo com a diretora – cria, por meio da paisagem sonora, o ambiente nordestino, já que em cena, não há elementos que possam propriamente remeter à essa geografia. O mínimo de elementos que a direção opta, para realçar ainda mais a história, está presente no figurino e no cenário – que é composto de apenas uma cadeira e um chão de palavras.

A atuação de Matheus Filgueira, o arquiteto-ator, vai nos envolvendo em sua narrativa – trata-se de um espetáculo épico – até explodir em diversas personagens, que encanta pela sobriedade, pela ausência de exageros, mesmo nas personagens que poderíamos ver como caricatas, demonstrando, assim, seu domínio de cena.
Écio, Sandra e Matheus. Foto Raíssa Dourado.

Há um trecho da peça em que o narrador afirma que “é preciso muita coragem para dar um passo”. O Barulho do Acre deu um passo certeiro na escolha do texto, com uma temática fundamental nos dias atuais, afinal “qualquer maneira de amor vale a pena”, já dizia o poeta. Além disso, foram corajosos em apostarem na palavra, esta que já imperou por séculos e depois foi tão negada na cena contemporânea, mas como demonstra a montagem de Agreste, ainda é fundamental nos palcos, sobretudo nas boas histórias.



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista; integrante do Teatro Ruante; coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão em Crítica Teatral; e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

[2] Ficha Técnica enviada por Sandra Buh:
Direção: Sandra Buh
Ator: Matheus Filgueira
Criação e execução musical: Écio Rogério e Sandra Buh
Figurino: Sandra Buh e Matheus Filgueira
Cenografia: Mateus Filgueira