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domingo, 5 de outubro de 2025

A ilusão de uma arte não alinhada

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Volta e meia, como o dia que inevitavelmente sucede à noite, ressurge o debate (ou a ilusão) de uma arte que não seja política, como se isso fosse possível. A reivindicação por uma arte “neutra”, “pura” ou “não engajada” é, em si, uma tomada de posição ideológica, pois o alinhamento ou engajamento é mais profundo do que muitas vezes se imagina. Todo ser humano nasce em um mundo culturalmente estruturado, em um tecido simbólico e social já dado, que antecede e condiciona nossas escolhas. À medida que ganhamos consciência, podemos deliberar e transformar, mas mesmo essas decisões se dão dentro dos limites do mundo conhecido, das linguagens e valores herdados. Assim, os pressupostos idealistas da arte — essa ideia de uma arte “autônoma”, “acima” das contradições históricas — persistem e atormentam os desavisados desde, pelo menos, a Antiguidade. No Ocidente, essa tensão tem raízes profundas: basta lembrar de Platão, que em A República expulsou os poetas de sua cidade ideal, por considerá-los perigosos à ordem racional do Estado.

Apesar dessa legitimação filosófica inicial, e de muitas outras que viriam depois, a condenação platônica ressurgirá diversas vezes ao longo da história ocidental, ora sob a forma de censura direta, ora como desconfiança moral em relação à arte e aos artistas, frequentemente vistos como figuras dissolutas ou subversivas. Como lembra Haar,

[...] na Inglaterra o puritanismo conseguiu, em 1642, o fechamento dos teatros. Assim também temos que lembrar que a instituição da censura é extremamente antiga e persistente: ela já existia desde Atenas, foi exercida pela Igreja e mais tarde organizada por Richelieu como aparelho do Estado (Haar, 2000, p. 31).

Desse modo, a perseguição às artes assume múltiplas faces: a censura explícita, o controle econômico, a desvalorização simbólica ou mesmo o discurso aparentemente inofensivo de que “arte e política não se misturam”. No fundo, trata-se sempre de uma tentativa de desarticular o potencial crítico da arte e de neutralizar seu poder de imaginar outros mundos possíveis.

Entretanto, se somos seres sociais e, portanto, seres políticos por definição, não há arte que não seja política. Raymond Williams explica com clareza essa condição de pertencimento estrutural:

[...] nascemos em uma situação social, em relações sociais, em uma família, que juntas formaram o que, elevando o nível de abstração, poderíamos ver como sendo nós mesmos enquanto indivíduos. Muito dessa formação ocorre antes de termos consciência de qualquer individualidade. De fato, a consciência da individualidade é frequentemente a de todos esses elementos de nossa formação, mesmo que nunca possa ser completada. Os alinhamentos são certamente profundos. São nossa maneira normal de viver no mundo, nossa maneira normal de ver o mundo (Williams, 2015, p. 127).

E Williams aprofunda ainda mais essa reflexão, tomando o caso específico do escritor:

[...] para um escritor, há algo ainda mais específico: ele nasceu em uma língua; seu próprio meio de comunicação é algo que aprendeu como se fosse natural, embora, sem dúvida, saiba que existem outras línguas muito diferentes. [...] Portanto, nascido em uma situação social, com todas as suas perspectivas específicas, e em uma língua, o escritor está alinhado desde o início (Williams, 2015, p. 128).

Ora, não é apenas o escritor que nasce sob uma língua, na verdade todo artista, mesmo aquele cuja arte não se expressa por palavras, está imerso em um universo simbólico e ideológico. Como já afirmara Bakhtin/Volochínov (2009), todo signo é ideológico: ao nos expressarmos, refletimos ou refratamos a realidade social em que estamos inseridos. Nesse sentido, como bem observam Carboni e Maestri, a língua “[...] é palco privilegiado da luta de classes, expressão e registro dos valores e sentimentos contraditórios de exploradores e explorados” (2012, p. 12).

Essa concepção é fundamental para compreendermos que não há neutralidade possível: toda criação, mesmo aquela que reivindica afastamento do “mundo real”, traz consigo um ponto de vista, um recorte de classe, de gênero, de território, de tempo. O mito da arte “pura” é uma das formas mais sofisticadas de alinhamento com o status quo.

O ator e diretor Orson Welles, em um breve texto sobre o teatro, recorda o quanto a arte ganha sentido quando se liga à vida concreta: ao referir-se à invasão da Áustria por Hitler, afirmou que quando a arte se conecta com a vida cotidiana “[...] então vale a pena fazer peças, compor canções para elas, produzi-las e nelas atuar. No minuto em que perdemos isso de vista, nós nos tornamos necromantes ou encantadores” (Welles, 1998, p. 139).

Evidentemente que isso não significa reduzir a arte a um mero discurso político. A arte exige forma, técnica, invenção estética. Pois, como lembra Bertolt Brecht (2005), quanto mais poética a arte for, mais potente será politicamente, sobretudo se revelar o mundo como algo transformável. A arte, afinal, não é reflexo passivo da realidade, mas uma força ativa que desestabiliza certezas e amplia o campo do possível.

Assim, insistir na neutralidade é, paradoxalmente, uma forma de alinhamento. Toda arte é política. A diferença está apenas em saber a favor de quem e de quê lado ela se move.

Referências

BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 13ª ed. Trad.: Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. 2ª ed. Trad.: Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

CARBONI, Florence; MAESTRI, Mário. A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

HAAR, Michel. A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras. Trad.: Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Difel, 2000.

WELLES, Orson. O teatro e a Frente Popular. In: PRAGA – Estudos Marxistas. N. 5, maio/1998. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 138-139.

WILLIAMS, Raymond. Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. Trad.: Nair Fonseca e João Alexandre Peschanski. São Paulo: EdUnesp, 2015.



[1] Professor do Departamento Acadêmico de Artes da Universidade Federal de Rondônia (UNIR); mestre e doutor em Artes (Área de Concentração Artes Cênicas) pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor, dramaturgo; integrante do Teatro Ruante; e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Audiência Pública de Cultura*

AUDIÊNCIA PÚBLICA DE CULTURA

Adailtom Alves Teixeira

Cumprimentos.

A Constituição de um país é um arcabouço político jurídico que orienta leis, normas e, por consequência, também as políticas públicas. Antes, porém, de se constituir em um corpo jurídico, ela é um pacto que a sociedade estabelece entre si.

O Brasil, no pacto que originou a CF de 1988, colocou a CULTURA como direito fundamental, pois ela está mencionada do Art. 5º, Dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Quanto às disposições específicas sobre a Cultura, dois outros artigos constitucionais, 215 e 216, no qual afirma que o Estado deve “garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais”, mais, garantir o “acesso às fontes da cultura nacional”, tendo, portanto, a obrigação de “apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

Ora, é justamente por meio das políticas públicas que esse apoio, incentivo, valorização e acesso podem ser garantidos. Se é direito de todos e dever do Estado, o caminho é via política pública de cultura. Afinal, é por meio de tais políticas que se transformam os direitos em práticas concretas, ao distribuir recursos e oportunidades. Em resumo: a função da política pública é mediar a relação entre Estado e sociedade, transformando demandas sociais em ações que melhorem a vida coletiva.

Nesse sentido, essa casa de leis é fundamental. Seja por ser representante do povo, seja por criar as leis, seja porque vota o orçamento do estado, seja porque fiscaliza o Executivo. E é preciso dizer que, infelizmente, o Legislativo não tem dado a atenção que merece o campo cultural. Vale mencionar que a cadeia produtiva da cultura e das economias criativas representam mais de 3% do PIB brasileiro, além de impactar diretamente em outros setores, para citar apenas um: a indústria do turismo.

Algumas pesquisas demonstram o alto retorno econômico para o estado quando investe-se em cultura. A FGV realizou uma pesquisa sobre a Lei Rouanet e constatou que de cada real investido, há um retorno de R$ 1,59; o governo do RJ em pesquisa acerca da Lei Paulo Gustavo contatou que de cada real investido teve um retorno de R$ 6,51; já o Estado de São Paulo, de cada um real, teve retorno de R$ 1,67 (O Globo). Ou seja, as pesquisas demonstram quão positivo economicamente é o investimento em cultura. Poderia citar também o impacto positivo na segurança, na saúde e outras áreas, mas o tempo é curto.

Senhor(a) presidente (a), é urgente que essa casa dê atenção ao Fundo Estadual de Desenvolvimento da Cultura do Estado de Rondônia – FEDEC, que vem enfrentando problemas desde sua criação, bem como dê atenção às políticas nacionais, como a PNAB – Política Nacional Aldir Blanc, que faz com que chegue recursos significativos ao estado, mas não vem sendo cumprido a contento, seja porque não executam totalmente, seja porque executam fora do prazo.

Cabe mencionar que das políticas emergenciais, Lei Aldir Blanc e Paulo Gustavo, também não foram executados todos os recursos, devolvendo dinheiro à União. Quem perde, é sobretudo a população rondoniense, pois os artistas, é importante que se diga, assim como a execução de uma política pública, eles são o meio para que a população acesse as manifestações culturais aqui produzidas. Os/as artistas, os/as produtores ao terem um projeto contemplado em um edital não ficam com o recurso para si – é obvio mas precisa ser dito –, ele EXECUTA UM PROJETO que faz com o direito básico de acesso garantido pela Constituição se cumpra, chegue até os/as cidadãos. Além de impactar economicamente diversas pessoas e o próprio PIB do estado.

Amir Haddad, um homem de teatro com mais de 60 anos de profissão, costumar afirmar que, “os militares fazem a pátria, os políticos fazem um país, mas só os artistas fazem a nação”. Isso porque a cultura constitui a identidade de um povo e sua arte é cimento fundamental dessa construção. A arte sempre chega primeiro.

Para encerrar, é preciso nos mirarmos em bons exemplos de políticas públicas de cultura em outras partes do Brasil. Quando olhamos, por exemplo, a potência do audiovisual pernambucano ou a efervescência do teatro paulistano, não podemos esquecer que por trás de ambos há uma sólida política pública. Que Rondônia possa seguir essa boa caminhada, que com certeza passa e precisará das decisões dos parlamentares dessa casa. Penso que a população de Rondônia merece acessar a produção de artistas tão diversos e potentes como o que temos no estado, para tanto, há que haver políticas públicas de cultura efetivas para o setor cultural.

Muito obrigado!


_________________

* Disponibilizo aqui a fala realizada durante a Audiência, que ocorreu no dia 10/09/2025 às 14h na Assembleia Legislativa de Rondônia a pedido do Conselho Estadual de Política Cultural (CEPC) em articulação com o Gabinete da Deputada Cláudia de Jesus.

domingo, 28 de setembro de 2025

A arte nasce da materialidade

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Vivemos tempos em que até o óbvio precisa ser reafirmado. Talvez por isso o título deste comentário, “A arte que se constitui da materialidade”, soe como uma tautologia, ou como aquilo que Nelson Rodrigues chamaria de “óbvio ululante”. Ainda assim, em meio a um cenário de urgências sociais e culturais, torna-se indispensável dizer o que parece evidente.

Na última sexta-feira, 27 de setembro, presenciei o lançamento de Eli e o Rio, novo livro de Matheus Pedrosa, editado pela Temática. A escolha do espaço foi precisa e simbólica: às margens do rio Madeira, no Complexo da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. De um lado, o rio, que é personagem central da narrativa; de outro, o traço de um projeto modernizador que marcou – e ainda marca – a vida da cidade e do estado. Ambos, rio e ferrovia, configuram o território e o imaginário que atravessam a obra. Explico-me.


A lembrança da lição de Fayga Ostrower é inevitável: em Criatividade e Processos de Criação (Vozes, 2014), a autora lembra que a matéria cultural “propõe os confins do possível para cada indivíduo”. A arte, compreendida como trabalho, nasce sempre de um chão concreto – um território, uma memória, uma experiência. É nesse ponto que a escrita de Pedrosa se enraíza. Natural de Porto Velho, o autor escreve a partir de seu quintal, mas, ao fazê-lo, alcança o universal. Cumpre, assim, a máxima atribuída a certo autor russo: cantar a aldeia é falar do mundo.

Formado em Direito e mestre em Estudos Literários pela Unir, Pedrosa alia vivência e técnica, mostrando que a criação literária exige mais que intuição: exige rigor e disciplina. Seu “livrinho” – no diminutivo apenas pelo formato físico, não pelo conteúdo – desvela questões cruciais do presente. Ali estão as dores de uma infância interrompida, os ecos da violência machista que insiste em assombrar Rondônia, a devastação dos recursos naturais cuja finitude não é mais segredo.

A materialidade cultural que constitui o autor transborda em sua escrita, mas ele não se limita a refletir o entorno. Vai além: convoca o leitor a pensar em como formar novas gerações capazes de enfrentar as necessidades de nosso tempo; denuncia o patriarcado como sistema corrosivo; e alerta para a relação predatória com a terra, que nos conduz a um horizonte de esgotamento. É impossível não recordar a advertência de Ailton Krenak em Futuro Ancestral (Companhia das Letras, 2022): “Os rios, esses seres sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.”

Eli e o Rio pode ser adquirido diretamente com o autor, na loja da editora Temática ou na Livraria Leitura. Como acontece com tantas obras regionais, a distribuição enfrenta obstáculos – mas essa é uma conversa para outro momento. Vale destacar ainda as ilustrações de Pedrosa, que dialogam com o texto e oferecem ao leitor um deleite visual.

O livro é um convite: revisitar a nossa relação com o território, a infância, o feminino (ainda que as personagens sejam masculinas) e a própria ideia de futuro. Uma obra pequena no tamanho, mas imensa naquilo que nos provoca a pensar.



[1] Professor do Departamento de Artes da Universidade Federal de Rondônia (Unir); mestre e doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); dramaturgo, diretor e ator; integrante do Teatro Ruante.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Pesquisa em teatro ou teatro-pesquisa

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Dizer que não existe teatro sem pesquisa é reconhecer que o teatro é uma arte da travessia. Nenhum gesto no palco é inocente: mesmo quando improvisado, traz consigo a memória de um corpo treinado, de um olhar que investigou, de uma experiência que se sedimentou em prática. O teatro é uma linguagem práxica porque só se revela no movimento; é, ao mesmo tempo, construção e descoberta. Nesse sentido, pesquisar não é apenas preparar um espetáculo, mas manter-se em estado de pergunta, de disponibilidade para o desconhecido.

De todo modo, é possível apontar uma divisão entre dois saberes: o teórico e o prático. O curioso, porém, é que ambos são teatro. O pesquisador que analisa estruturas cênicas, estéticas ou históricas, ainda que distante da ribalta, habita o mesmo terreno do ator que improvisa no ensaio. São olhares distintos sobre a mesma paisagem. O primeiro procura mapear, o segundo atravessar. Ambos, no entanto, caminham. E é esse caminhar que funda o teatro como campo de investigação permanente.

No fazer prático, a pesquisa precisa se reinventar a cada geração. Na contemporaneidade vive-se o encolhimento do tempo-espaço; a velocidade com que as informações circulam desafia a lentidão do processo teatral, que exige presença, repetição, escuta. Como criar nesse intervalo estreito, onde tudo parece já nascer obsoleto? Talvez a resposta esteja em aprofundar, e não em competir com a aceleração: um tempo outro, de resistência, em que a cena possa devolver densidade à experiência humana.

Há também a exacerbação do eu, essa necessidade de nossos dias de afirmar-se como singularidade. O teatro, uma arte coletiva por definição, vê-se tensionado por essa lógica. O ator não se esconde mais na personagem, mas a devora, a desmonta, a expõe em pedaços. O eu torna-se matéria cênica, ora como autobiografia, ora como fragmento de um corpo coletivo que insiste em se mostrar por meio da diferença.

Com isso, desmontam-se estruturas que pareciam sólidas. O texto dramático já não é mais o eixo absoluto: muitas vezes, a dramaturgia nasce do gesto, da imagem, da música, da relação direta com o espectador. A personagem, antes um ente fictício com arco psicológico e destino claro, dissolve-se em figuras fluidas, máscaras móveis, presenças instáveis. Tempo, espaço e ação (as tais unidades aristotélicas) cedem lugar a experiências descontínuas, fragmentadas, rizomáticas, como se a cena se tornasse um espelho estilhaçado do próprio mundo em que vivemos.

A pesquisa em teatro, então, não é um exercício acadêmico isolado, nem apenas uma etapa preparatória do ensaio. Ela é o próprio pulso dessa arte. É aquilo que impede a cena de repetir fórmulas, que a obriga a inventar modos novos de existir. O teatro só permanece vivo porque está sempre em pesquisa, seja no caderno do estudioso, seja no corpo do ator e da atriz, seja no olhar do/a espectador/a que, ao sair da sala, leva consigo perguntas que não se fecham.

No fundo, pesquisar teatro é aceitar que estamos sempre à beira de um precipício. Cada espetáculo é um risco: pode fracassar, pode iluminar, pode confundir. Mas é nesse risco que se dá a potência da pesquisa. Pesquisa que é sempre uma aposta no desconhecido, no que ainda não tem nome, no que só pode ser encontrado quando encenado.

Se pesquisar em teatro é colocar-se em estado de pergunta, então essa pergunta nunca é apenas estética: é também ética e política. O teatro, afinal, não se encerra no palco; ele transborda para a vida. Cada gesto cênico é também um gesto social, cada silêncio ressoa em um contexto histórico, cada corpo que se apresenta carrega marcas de classe, gênero, raça, território. A pesquisa em teatro, por mais formal que possa parecer, nunca se limita ao formalismo: ela toca a condição humana.

É nesse sentido que a linguagem afirma-se como espaço ético-político. Ético porque convoca responsabilidade: ao representar, inventar ou subverter imagens de mundo, ele questiona não só o que mostramos, mas o que escolhemos não mostrar. Político porque, ao reunir pessoas em torno de uma experiência comum, ele cria uma comunidade provisória, uma assembleia, um ensaio de convivência. Ocupando um mesmo espaço (sala, rua, alternativo etc.), espectadores e artistas compartilham tempo, espaço e risco: experimentam, por instantes, outros modos de ser e de estar juntos/as.

A pesquisa, nesse contexto, é a ferramenta que sustenta a densidade dessa experiência. Ela impede que o teatro seja mero entretenimento passageiro e o reafirma como laboratório da vida. Ao investigar novos modos de dramaturgia, ao desmontar personagens clássicas, ao tensionar as noções de tempo e espaço, o teatro não apenas reinventa a forma, mas também propõe outras maneiras de pensar o humano. Se a contemporaneidade nos força a viver no ritmo acelerado do consumo, o teatro-pesquisa pode abrir brechas para a pausa, para a escuta, para o encontro.

O teatro, quando arrisca, quando pesquisa, não se contenta em reproduzir a realidade, mas em  interrogar, contradizer, transfigurar. Isso é político. A cena pode denunciar violências invisíveis, revelar exclusões, mas também pode inventar futuros possíveis, mundos ainda não vividos. Nesse sentido, toda pesquisa teatral é também uma pesquisa da condição humana: como nos relacionamos, como sofremos, como desejamos, como resistimos.

Defender o teatro como espaço ético-político é, portanto, defendê-lo como lugar de responsabilidade e de liberdade. Responsabilidade porque cada cena que criamos ecoa em um mundo atravessado por desigualdades e urgências. Liberdade porque a pesquisa teatral insiste em imaginar outras realidades, mesmo que provisórias, mesmo que frágeis. Entre a memória e a invenção, a linguagem teatral se faz como um campo onde podemos experimentar, ainda que por instantes, o que significa ser humano, bem como o que poderia significar sê-lo de outra maneira.

O teatro-pesquisa pode vir a ser, em última instância, uma vigília de nossa humanidade. Não se trata apenas de projetar e erguer cenários o criar jogos de luzes, mas de acender fogueiras no escuro do nosso tempo. Cada ensaio é uma aposta no comum, cada espetáculo pode ser um chamado à responsabilidade de existir. No instante em que corpos e vozes se encontram, abre-se um território em que podemos ver de novo o que parecia invisível, dizer o que se queria calado, imaginar o que ainda não nasceu. O teatro, especialmente aquele que pode se dedicar à pesquisa, é uma resistência, pois lembra-nos de que não somos peças isoladas, mas parte de uma trama maior. Praticá-lo é defender a própria possibilidade de continuarmos humanos diante do abismo do tempo presente.



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (Unir); doutor e mestre em Artes (área de concentração Artes Cênicas) pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor e dramaturgo; integrante do Teatro Ruante e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

domingo, 24 de agosto de 2025

Crise de narrativa

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Vivemos uma contradição inquietante: nunca se falou tanto em “narração” e, paradoxalmente, nunca estivemos tão mergulhados em uma crise profunda das narrativas. Se no passado as histórias orais eram a base para dar coesão às comunidades, construindo laços, identidades e memória coletiva, hoje, no ritmo vertiginoso das telecomunicações e da hiperconectividade, quase nada permanece. Tudo é instantâneo, tudo se dissipa.

Walter Benjamin já percebia os sinais dessa crise em seu célebre ensaio “O Narrador”, escrito à sombra da Primeira Guerra Mundial. Para ele, aquele conflito trouxe uma “pobreza de experiência” em vez de um enriquecimento humano. Se as narrativas são mediadoras de experiência, o que restava era o silêncio diante do absurdo das guerras. É significativo lembrar que a Primeira Guerra foi o primeiro grande conflito marcado pelo uso massivo da tecnologia, tanto nos armamentos quanto nos meios de comunicação. Essa ruptura levou Benjamin a afirmar, em outro texto seu, “Experiência e Pobreza”: “Uma forma completamente nova de miséria recaiu sobre os homens com esse monstruoso desenvolvimento da técnica” (2012, p. 124).

Décadas depois, Byung-Chul Han (2023) retoma e aprofunda essa análise, evidenciando como a narrativa tradicional, que era circular, fechada e criava comunidade, foi substituída pelo storytelling — uma narrativa funcional, voltada para a lógica do consumo. Nas palavras do autor: “A Community é formada por consumidores. Consumidores são solitários. Não formam uma comunidade.”
O storytelling, assim, é uma apropriação capitalista da narrativa: as histórias não existem mais para compartilhar experiências, mas para dar emoção aos produtos, para transformá-los em objetos mais vendáveis.

Han também distingue narração e informação, de certo modo, retomando a diferença benjaminiana entre vivência (Erlebnis) e experiência (Erfahrung). A vivência passa por nós superficialmente; a experiência nos atravessa, nos transforma. No entanto, na sociedade atual, a aceleração informacional promove o que Han chama de desnarrativização do mundo. Ele alerta: “Estamos muito bem-informados, mas desorientados.”

Evidente que essa dinâmica altera a nossa capacidade de atenção, é que pesquisas no campo da neuro ciência tem demonstrado. A narrativa exige tempo, paciência, disponibilidade — virtudes em extinção. Hoje, queremos tudo rápido: reels que expliquem assuntos complexos em segundos; áudios ouvidos em velocidade 1,5x ou 2x; livros resumidos em posts. Até as indústrias da narrativa por excelência, como a editorial e a audiovisual, se adaptaram: séries mais curtas, filmes condensados, livros com menos páginas. Obras com mais de 200 páginas (quando não são clássicos) se tornam raras, enquanto cresce o fenômeno da autoficção, sintética e fragmentada. Desse modo, temos uma inflação de narrativas que não resolve o problema; pelo contrário, o amplia. Como afirma Han: “O storytelling representa um fenômeno patológico do presente” (2023, p. 16).

Diante disso, surge a pergunta: há saída? Luis Alberto de Abreu, um dos grandes dramaturgos brasileiros, sugere que o teatro épico seja uma das possíveis respostas. Para ele, essa forma não apenas promove a partilha, mas: “Propõe e pede a restauração da antiga unidade entre o público e o privado, o indivíduo e sua comunidade, a força progressista e de ruptura da imaginação individual e a solidez do imaginário coletivo” (2011, p. 609).

Tal proposta dialoga diretamente com as contribuições de Bertolt Brecht, que, ainda segundo Abreu, abriu caminhos para um teatro capaz de equilibrar elementos épicos e dramáticos, recuperando o potencial crítico e coletivo da narrativa. Diferenças entre o épico e o dramático, no entanto, é uma conversa para outro momento.

Referências

ABREU, Luís Alberto. A restauração da narrativa. In: NICOLETE, Adélia (Org.). Luís Alberto de Abreu: um teatro de pesquisa. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 599-609.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.

HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Petropolis, RJ: Vozes, 2023.



[1] Professor do curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (Unir); mestre e doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); integrante do Teatro Ruante.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Quando as contradições explodem

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

A valorização moral do trabalho como virtude não é uma noção atemporal ou natural, mas uma construção histórica que ganha força especialmente com a ética protestante calvinista. Essa perspectiva, que associa a prosperidade à graça divina e ao esforço individual, foi fundamental para justificar as desigualdades sociais ao longo da modernidade. Assim, os ricos seriam “trabalhadores virtuosos” e os pobres, vítimas da própria “preguiça” ou falha moral. Tal lógica é reciclada nos tempos atuais pela ideia de meritocracia e pela teologia da prosperidade, que insiste em afirmar que o sucesso é apenas fruto da dedicação pessoal, ignorando por completo as estruturas sociais que moldam as oportunidades.

Contudo, nas últimas décadas, com o avanço das tecnologias da informação e da comunicação, o capitalismo sofreu mutações profundas. A aceleração do tempo histórico e a compressão do espaço – fenômenos bem descritos por autores como David Harvey (1996) – fizeram emergir uma nova configuração social, marcada por serviços, virtualidade e imaterialidade da produção. A chamada sociedade de conhecimento, ou sociedade em rede, como define Manuel Castells, revela um deslocamento do eixo produtivo clássico para formas de trabalho cada vez mais simbólicas e cognitivas: “O que pensamos e como pensamos é expresso em bens serviços, produção material e intelectual, sejam alimentos, moradia, sistema de transporte e comunicação, mísseis, saúde, educação ou imagens” (Castells, 2011, p. 69).

Neste novo regime, as big techs tornam-se protagonistas. Empresas como Google, Amazon, Meta e outras dominam mercados, ditam comportamentos e capturam, por meio de algoritmos, nossos dados e nossas subjetividades. Para Marilena Chaui, essa nova configuração social se estrutura na “articulação entre ciência, tecnologia e setor empresarial” (2025, p. 119). A ideologia que a sustenta é a da competência, onde o valor do indivíduo é medido por sua capacidade de adaptação, produtividade e visibilidade.

A virtualidade deixou de ser apenas potência – como era concebida na filosofia – e passou a ser realidade concreta e dominante. Vivemos em um presente contínuo, sem memória do passado ou projeto de futuro. Nesse cenário, o sentimento de existência está atrelado à visibilidade nas redes: “O sentimento de que existir é ser visto, dando origem a uma subjetividade narcisista que, como já explicara Freud, é uma subjetividade depressiva” (Chaui, 2025, p. 121).

A consequência é uma explosão de doenças psíquicas, um mal-estar generalizado da civilização digital. Estamos, muitas vezes, trabalhando sem perceber – e sem remuneração – alimentando com nosso tempo, atenção e dados os sistemas que geram valor para poucos. As redes sociais se tornaram novas formas de exploração do trabalho, ao mesmo tempo em que promovem fragmentação e alienação.

Diante dessa realidade, a velha estrutura de classes persiste e se aprofunda, ainda que obscurecida pela ideologia. A desigualdade é visível a olho nu, mas a ideologia dominante esconde sua origem estrutural e tenta explicá-la como fruto de desvios individuais.

A ideologia distingue, assim, o de facto e o de jure: de fato há divisões sociais; de direito, a sociedade é uma, indivisa, homogênea e harmoniosa, de sorte que as divisões são meramente empíricas e suas causas devem ser encontradas em maus sujeitos sociais (facções, rebeldes, bandidos, preguiçosos, raças inferiores, caipiras, migrantes, imigrantes etc.) (Chaui, 2025, p. 125).

O resultado é a busca constante por inimigos internos ou externos, culpados pelo "fracasso" coletivo. Quando não se encontram inimigos fora, o olhar se volta contra si mesmo, num autojulgamento cruel: cada um se torna responsável pela sua própria derrota, reforçando o isolamento e a culpa.

A crítica de Chaui revela como a ideologia neoliberal opera por deslocamento: “A lógica da circulação das mercadorias, no lugar da lógica da produção; a lógica da informação e da comunicação, no lugar da lógica do trabalho; e a lógica da satisfação-insatisfação dos desejos individuais na sua intimidade, no lugar da lógica da luta de classes” (Chaui, 2025, p. 126).

Esse processo reforça a ideia de que não há alternativa ao sistema atual, mesmo diante de sua evidente falência civilizatória. Estamos, como já se disse, em uma fase histórica em que o velho mundo apodrece, mas o novo ainda não nasceu. A contradição, contudo, insiste em se manifestar. Apesar da ideologia buscar apagar a luta de classes, ela ressurge em manifestações, em greves, em rebeliões urbanas e também em movimentos difusos nas redes sociais.

Como na canção popular, “a vida vem em ondas”, tal onda, ainda que seja algo que vem e passa, deixa marcas. A onda do momento é o “nós contra eles” e o “Somos 99%” (uma releitura do Occupy Wall Street?) são expressões simbólicas da luta de classes que se manifesta dentro do próprio campo das big techs – afinal esse território é do capital, mas depende do uso diário dos/as trabalhadores/as. É preciso ter clareza de que: “A luta de classes não é um conflito, e sim uma contradição interna ao capitalismo entre duas classes que se definem uma pela negação da outra” (Chaui, 2025, p. 130).

A radicalização da desigualdade no Brasil torna essa contradição ainda mais evidente. De um lado, uma elite econômica concentrada no Congresso, formada por representantes do agronegócio, do sistema financeiro e de setores religiosos fundamentalistas. De outro, uma população exausta, precarizada, empurrada para a informalidade e convencida de que deve ser empreendedora de si mesma. A política neoliberal de Estado mínimo para os pobres e Estado máximo para os ricos – com isenções, subsídios e proteção jurídica – gerou uma explosão de insatisfação.

Mesmo com a crise das esquerdas, incapazes por ora de apresentar um projeto alternativo convincente, a realidade econômica bateu mais forte que o discurso dos coaches e dos televangelistas, adeptos da teologia da prosperidade. A fantasia da meritocracia não se sustenta diante da fome, do desemprego, da violência estrutural e da ausência de perspectivas reais para a maioria da população, especialmente a mais jovem.

Em tempos como o nosso, a lucidez crítica é não só um exercício de pensamento, mas uma forma de resistência. O primeiro passo é ver além das aparências e reconhecer que, apesar de todas as máscaras, o sistema continua sendo o mesmo: produtor de desigualdades e destruidor de futuros. Que os movimentos saiam das redes, do virtual, e ganhem o real, as ruas.

 

Referências

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

CHAUI, Marilena. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2025.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. 6ª ed.  São Paulo: Loyola, 1996.



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; graduado em História.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

A beleza inútil da Arte: regeneração humana em tempos de exaustão

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Somos seres que necessitam da beleza tanto quanto do alimento e do abrigo. A arte, em suas inúmeras manifestações, está presente em todas as sociedades humanas desde os tempos mais remotos. Pinturas rupestres, danças tribais, cantos ritualísticos, esculturas, narrativas orais — todas essas expressões revelam uma verdade fundamental: o impulso estético é constitutivo da experiência humana. Há, segundo Fischer (1973), uma necessidade de complementarmos nossas experiências, pois, ao sabermos que não somos únicos, temos o desejo de complemento no/a outro/a. Não vivemos apenas para sobreviver; somos seres desejantes, vivemos para sentir, sonhar e compartilhar significados — e é justamente isso que a arte nos proporciona, aí estaria uma de suas funções: a capacidade de vivermos uma experiência pela via estética.

Diferentemente dos objetos criados para fins práticos, a arte carrega em si um traço essencial: a não utilitariedade. Mesmo quando inserida em mercados que transformam criações em mercadorias altamente lucrativas, a essência da arte não está no lucro. Sua função não é funcionar, mas emocionar, inquietar, interrogar e, sobretudo, provocar. Essa ausência de finalidade prática é o que a torna tão poderosa. Vilém Flusser (2015), apresenta um outro aspecto da arte, que dialoga com que estamos defendendo: a capacidade de moldar as nossas experiências. O autor cita que no medievo tardio o Romance da Rosa passou a ser um modelo de amor romântico, adotado pela classe social nascente, a burguesia, a experiência foi depois universalizada, aos poucos, ao longo dos séculos e disseminados até hoje pela TV e pelos filmes estadunidenses, mas não só. Nas suas palavras: “O exemplo também mostra do que se trata na arte. Trata-se da elaboração e da comunicação de modelos para nossas experiências concretas do mundo. Toda experiência é modelada, programada pela arte. Todos os nossos prazeres e tristezas, todas as experiências das cores, dos sons, das formas, das tessituras, dos perfumes que nós temos, todo sentimento de amor e de raiva têm um modelo artístico. Nosso mundo é estruturado não somente pela nossa informação genética, mas também por nossa informação estética. Onde não há modelo estético, estamos ‘anestesiados’ = nós não temos experiência nenhuma. Nós dependemos da arte para poder perceber o mundo” (Flusser, 2015, p. 43). Mas, na lógica capitalista, tudo precisa servir para algo, gerar capital ou ao menos justificar seu uso com eficiência. Nesse sentido, os aspectos da arte aqui levantados, aparecem como gestos subversivos nesse sistema: uma oferenda ao sensível, ao gratuito, ao que escapa da lógica da reprodução incessante.

Davi Kopenawa (2015), xamã Yanomami e uma das grandes vozes indígenas do Brasil contemporâneo, tem razão ao nomear os não indígenas como o “povo da mercadoria”. Essa expressão, ao mesmo tempo poética e crítica, aponta para uma doença civilizatória: a transformação de tudo em objeto de troca. Na sanha de acumular e explorar, o povo da mercadoria destrói florestas, rios, montanhas e saberes ancestrais. Envenena o solo e a si mesmo. Corta árvores para plantar soja, seca nascentes para extrair ouro, devasta ecossistemas para produzir mais mercadorias, porém, perdem a capacidade de sonhar, e nisso vão se desumanizando e perdendo sua conexão mais profunda com a mãe terra.

A destruição ambiental não é apenas física; é também simbólica. O adoecimento do planeta está profundamente ligado ao nosso adoecimento psíquico. A ansiedade, o esgotamento mental, a sensação de vazio e a depressão que assolam milhões de pessoas – que Byun-Chul Han (2017) chama de sociedade do cansaço –, são, em grande parte, sintomas de um modo de vida que nos desliga da beleza, da contemplação, do tempo lento e da partilha sensível — valores fundamentais da experiência artística.

É por isso que precisamos da arte. Mais do que nunca, de todas as artes. Das que cantam, dançam, dramatizam, esculpem, bordam, esculpem o barro, improvisam com o corpo, das que narram o mundo visível e das que criam outros mundos. Elas nos espelham, refletem e refratam nossa realidade, ampliam a percepção e desorganizam as certezas. A arte não apenas embeleza a vida — ela nos oferece outros modos de habitá-la, inclusive outras maneiras de resistir, especialmente as artes que, de modo crítico, estão comprometidas com um mundo mais justo e igualitário.

Paradoxalmente, é justamente naquilo que o capitalismo considera “inútil” que reside a força mais profunda da arte. Uma cerâmica moldada à mão, um instrumento feito de madeira ancestral, uma peça de teatro encenada na praça, uma poesia que ressoa no corpo — essas experiências não têm finalidade prática imediata, e é por isso que nos tocam tão fundo. Elas não servem a um propósito utilitário, mas a um propósito humano. Tais características, num mundo regido pela lógica da eficiência e do lucro, é revolucionário.

A arte, em sua suposta “inutilidade”, é medicina. Não é chavão afirmar que a arte cura. Ela nos lembra que somos mais do que engrenagens de produção, que nosso valor não se mede pela produtividade, por isso nos regenera. Ela nos reconecta com o espanto, com a memória, com a possibilidade do afeto e da comunhão. Em tempos de colapso ambiental e psíquico, a arte é imprescindível — e pode nos salvar de nós mesmos ou de até onde nos levou o atual modo de produção. Evidente, que uma saída radical não se faz individualmente, mas é preciso nos reconectarmos socialmente, para tanto, mais uma vez precisamos de arte.

Assim, honremos sua “inutilidade”. Porque é nela que reside sua potência. Porque é dela que, ao revelar nosso aspecto mais humano, mais precisamos. Como afirma Michèle Petit, “O utilitário nunca basta. Talvez sejamos, antes de tudo, animais poéticos, pois os humanos criam obras de arte há mais de quarenta mil anos, bem antes de inventar a moeda ou a agricultura” (2024, p. 7).

Referências

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

FLUSSER, Vilém. A arte: o belo e o agradável. In: IANINI, Gilson; GARCIA, Douglas; FREITAS, Romero (Orgs.). Artefilosofia: antologia de textos estéticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 42-46.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Trad.: Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. Trad.: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cia das Letras, 2015.

PETIT, Michèle. Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise. Trad.: Raquel Camargo. São Paulo: 34, 2024.



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; graduado em História pela Universidade Cruzeiros do Sul; integrante do Teatro Ruante; autor dos livros Circo Teatro Palombar: somos periferia; potência criativa (Fala, 2024), Teatro de rua: identidade, território (Giostri, 2020); um dos fundadores e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

A cidade e o teatro

 

Adailtom Alves Teixeira[1]


Precisamos ir para as ruas! Temos de destruir esta arquitetura que separa os homens.
Julian Beck

Vivemos tempos em que as ruas voltam a pulsar. Em Porto Velho, a Praça Pequeno Vitor Emanuel, no bairro São João Bosco, foi recentemente ocupada por dois importantes eventos: o Festival PalhAçaí, realizado pelo Teatro Ruante nos dias 30 e 31 de maio e 1º de junho, e o Festival Amazônia Encena na Rua, realizado pelo O Imaginário entre os dias 4 e 8 de junho. Ambos devolveram à cidade aquilo que lhe pertence: o encontro entre o artista e o povo, o riso e a denúncia, o jogo e a reflexão. Foram noites agradáveis, sem paredes, sem palco elevado, sem ingresso.

Teatro Ruante - Selma Pavanelli, palhaça Tinnimm
Foto Maycon Moura

Os citados festivais não são apenas momentos de celebração artística, são afirmações políticas e existenciais. Em um mundo marcado pelo isolamento, pela especialização extrema e pela alienação — tristes heranças do capitalismo tardio —, ir para a rua é um ato de resistência. A arte, especialmente o teatro de rua, é uma ferramenta de humanização: cria laços, desafia certezas, convoca o coletivo.

O teatro de rua rompe com os muros simbólicos e concretos que separam as pessoas. Ele não exige trajes específicos, nem silêncios reverentes. Ele se impõe pelo gesto e pela palavra no meio da cidade, onde a vida pulsa. Nesse sentido, como bem apontava o ator e diretor Julian Beck, há dois tipos de teatro: o que adormece e o que desperta. Penso que o teatro que desperta é aquele que escolhe a rua como espaço de manifestação e a cidade como interlocutora. Evidente que tal pontuação não visa criar uma hierarquização entre os diversos teatros, não é esse o objetivo.

Historicamente, o teatro sempre esteve atrelado à polis. Na Grécia antiga, era uma ferramenta de reflexão cívica; na Idade Média, tomava as praças e ruas durante os mistérios religiosos e os ciclos festivos. Hoje, ao se colocar nos espaços abertos, ele pode recuperar esse papel de catalisador do debate público. No encontro entre artistas e público na cidade, seus problemas aparecem, como o transporte precário, a insegurança, a invisibilidade das populações marginalizadas, a especulação imobiliária e o abandono das praças públicas, mesmo que não estejam em cena.

Cabe mencionar que o teatro de rua é uma arte marginal, no melhor sentido da palavra, pois desafia a lógica mercantil ao oferecer acesso livre e transformar o transeunte em espectador, ao mesmo tempo em que ressignifica o espaço urbano como lugar de fruição estética e partilha simbólica. Ele descentraliza a arte não apenas geograficamente, mas também socialmente. Permite o acesso a quem não tem o hábito (ou o privilégio) de frequentar as salas fechadas.

O Imaginário - Edmar Leite, Flávia Diniz, Amanara Brandão
e Chicão Santos - Foto Maycon Moura.

Porto Velho, ao sediar festivais como o PalhAçaí e o Amazônia Encena na Rua, reafirma sua vocação para a arte pública e popular. Em meio ao concreto quente da cidade e o mormaço amazônico, surgem vozes, cores, gestos que nos tocam e nos fazem lembrar que o teatro é (e sempre foi) a arte do encontro.

Mais do que nunca, teatro de rua e cidade estão umbilicalmente ligados. A praça é palco, a rua é cenário, o público é cúmplice. E essa relação não é apenas estética, mas ética. Ao nos reunirmos no espaço aberto para rir, chorar, pensar e resistir juntos, criamos a possibilidade de uma cidade mais humana, mais sensível, mais consciente.

Vamos pra rua!



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; mestre e doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor e dramaturgo; articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

domingo, 8 de junho de 2025

A Força da Água jorra resistência popular

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Água não falta. Ela é negada.

Essa é a chave política — e histórica — que o espetáculo A Força da Água, do grupo cearense Pavilhão da Magnólia, leva ao público, revelando uma engrenagem social antiga, mas ainda em funcionamento. O coletivo com duas décadas de existência (haja resistência para tal longevidade em um país que padece de políticas públicas estruturantes para a cultura) e destaque nacional do Prêmio Shell 2025, justamente com o espetáculo em tela, aportou em Porto Velho dentro da programação do Palco Giratório, realizado pelo Sesc.

O espetáculo aborda as secas do Ceará — iniciando com foco na grande estiagem de 1877-1879, mas avançando por outros períodos — o trabalho reencena uma velha história de negação, deslocamento, repressão e invenção de inimigos. História que ainda escorre pelas frestas do presente.

A Força da Água, imagem retirada da internet.
Foto de Sérgio Lima

A escolha por uma cena documental, modalidade teatral ainda pouco praticada, exige que olhemos para as contradições expostas: entre o discurso oficial e a experiência vivida, entre o Estado e o povo, entre a necessidade coletiva e os interesses privados. O grupo, com cinco artistas em cena – Denise Costa, Eliel Carvalho, Jota Junior Santos, Nelson Albuquerque e Silvianne Lima –expôe como a falta d'água nunca foi um fenômeno puramente natural, mas o resultado de escolhas políticas e econômicas que sistematicamente colocaram a vida do povo como última prioridade — ou ainda, quando estes se organizam, tornam-se obstáculo à ordem vigente.

A opção estética de Pavilhão da Magnólia recusa o lugar comum do espetáculo neutro e mergulha numa linguagem de confronto. Aliás com a bela e boa dramaturgia e direção de Henrique Fontes, põe em cena uma teatralidade popular, uma narrativa épica e o corpo político em cena. Sim, pois os corpos levam consigo suas territorialidades. Não há personagens, mas há interpretação e muita teatralidade, operando o distanciamento brechtiano e alternando entre o testemunho e a fabulação, a memória e a denúncia, a metáfora e o discurso direto. A seca serve de testemunho histórico de um Estado que desertifica vidas para concentrar riquezas.

A montagem tem plena consciência da sua dimensão pedagógica e dialética. Faz do palco um espaço de historicização e questionamento: por que a água — condição sine qua non da vida — sempre foi negada ao povo cearense? (Tantas perguntas podem ser feitas sobre outras tantas negações...) E por que, diante de qualquer tentativa de organização popular, o Estado sempre recorreu à força repressiva e à construção de fantasmas ideológicos, como o comunismo, para legitimar a violência? Ou, ainda, valendo-se de líderes carismáticos para desmobilizar... (havemos sempre de pensar no presente!)

A encenação utiliza elementos simples e estilizados, canos, pedra, água (ao final, quando escorre um pequeno fio em uma pedra dura), mas não cai na armadilha do miserabilismo. Ao contrário: politiza a fome, a sede e outras tantas negações. Revela como o drama daquela população (só da cearense?) foi funcional à manutenção de um projeto de poder.

A seca de 1877-1879, com a qual se inicia a relação documental, dialoga diretamente com a realidade amazônica. Pois, naquele momento, ao invés de políticas assertivas, o que se viu foi o uso do deslocamento forçado de milhares de nordestinos para os seringais, no chamado primeiro ciclo da borracha. E é aí que, ainda que não mencione, o espetáculo alcança o nosso lugar com vigor crítico: lembrando que o Norte do país foi, historicamente, destino de uma diáspora forçada e silenciada, marcada pela submissão e pela espoliação. Ou, como afirma certo ditado popular: o Norte é neto do Nordeste.

A Força da Agua, imagem retirada da internet.
Foto de Sérgio Lima

O público de Porto Velho, pequeno, porém caloroso, que recebeu o espetáculo na noite de 7 de junho, no Teatro Banzeiros – aliás, bem significativo que um espetáculo sobre a água tenha ocorrido em uma casa com esse nome –, presenciou a representação e o reavivamento de sua memória, pois foi convidado não apenas a assistir, mas a reconhecer-se como parte de uma história que não começou (e nem termina) nos limites geográficos de um estado. A seca do Nordeste, especialmente do Ceará, ressoa nos rios do Norte e nas cicatrizes da borracha ainda visíveis nos rostos dos descendentes expulsos tempos atrás.

Cada elemento em cena tem função política e poética. A água, que só vemos ao final, é promessa de disputa e resistência, metáfora de que é preciso insistir e persistir, afinal, água mole em pedra dura... A trilha sonora, executada ao vivo, revela uma pluralidade sonora e rítmica, reforçando o necessário distanciamento crítico.

O espetáculo, por fim, não representa a seca como um passado encerrado, mas como estrutura permanente de negação, no qual o inimigo interno — ora o retirante, ora o comunista, ora o pobre organizado — é construído para justificar políticas de repressão e exclusão. A Força da Água é, assim, um ato de insurgência estética e política. Um teatro que se coloca em movimento com o povo, e não apenas sobre o povo. Um teatro que historia a miséria, confronta a memória oficial e expõe as fissuras de um país construído sobre o controle das águas e dos corpos. O espetáculo do Pavilhão da Magnólia reafirma a potência da linguagem teatral como arena de disputa. Uma arte que não sacia a sede, mas abastece nossa memória e aponta o dedo para quem insiste em fechar as torneiras. Metáfora!



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia, Curso Licenciatura em Teatro; mestre e doutor em Artes, área de concentração Artes Cênicas, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor, dramaturgo e integrante do Teatro Ruante.

O teatro praticado às margens*

 Adailtom Alves Teixeira[1]


A porção de terras, águas e florestas, que cobre a maior parte do território brasileiro, mais de 50%, chamado Amazônia, em que as distâncias são inimagináveis para muitas pessoas, onde os rios servem de veias para a vida, aqui também pulsa também a arte do teatro. Praticado às margens – das grandes cidades, das políticas culturais nacionais e das narrativas hegemônicas – o teatro do Norte do Brasil resiste como um testemunho de luta, criação e identidade.

Grande parte da integração forçada da região amazônica ao Brasil ocorreu sob o pretexto do progresso, sobretudo durante os períodos autoritários do Estado Novo (1937-1945) e da ditadura civil-militar (1964-1985). O lema "integrar para não entregar" mascarava projetos que devastaram comunidades originárias e ecossistemas, transformando a floresta em um laboratório de exploração econômica. Nesse contexto, e ao longo do século XX, o teatro percorreu altos e baixos, mas resistiu ecoando vozes e buscou compreender todo esse processo, ao mesmo tempo que denunciou as violências e propôs narrativas alternativas.

Focando apenas em algumas experiências mais longevas e alguns estados do Norte do Brasil, passo a mencionar aquelas mais próximas de nosso tempo histórico. De Rondônia, o Grupo Quebracabeça, fundado em 1982 por Alejandro Bedotti (argentino) e Ângela Cavalcante (fluminense) – mais que chegaram ao então Território ainda em 1979 –, tornou-se um dos símbolos dessa resistência. Em tempos em que a preocupação ecológica era periférica, o grupo já abordava temas como a ocupação do estado, chamada de colonização, e os impactos ambientais da exploração desenfreada, seja pela poluição dos rios, derrubada da floresta ou pela mineração. Apesar de ter realizado sua última apresentação há alguns anos, a chama criativa ainda persiste por meio de Ângela Cavalcante e Marlúcio Emídio, mantém o coletivo vivo, embora sem nenhuma obra em repertório,lá se vão mais de quatro décadas.

Ainda em Porto Velho, o Grupo Raízes do Porto, liderado por Suely Rodrigues desde 1991, personifica a diversidade e a inclusão que o teatro pode alcançar. Em palcos tradicionais, alternativos ou nas ruas, suas encenações dialogam com a cultura popular e tratam de questões como a violência de gênero e o universo infantil, revisitando lendas e brincadeiras populares. O grupo vem ganhando novo folego e retomando algumas de suas obras, como o infantil Minhoca na cabeça, com dramaturgia e direção da pernambucana Suely Rodrigues, obra que continua a encantar o público. Em cena Emilli Souza, Juraci Júnior, Kenny Frazão e Odinaldo Maurício. Outro espetáculo é Confidências de um espermatozoide careca de Carlos Eduardo Novaes, direção de Suely e atuação de Geovani Berno e Odinaldo Silva. Somam-se mais de três décadas e muitos espetáculos em sua trajetória.

Do Acre, destaca-se a Federação de Teatro do Acre (FETAC), fundada em 1978. Trata-se de uma instituição que reúne diversos coletivos em torno de si, a Federação mantém vivo o espírito do teatro na região, organizando festivais e oferecendo suporte a coletivos em todo o estado. Sua existência desafia o descaso e aponta para a potência do que foi (e é) o movimento federativo, que ainda reverbera em festivais e programações, promovendo a democratização do acesso ao teatro. A luta por políticas públicas é a tônica da instituições que congrega dezenas de grupos, como a Cia Visse Versa, criada em 2008 e com atuação muito significativa, pois além de seus espetáculos produz o Festival Matias de Teatro de Rua.

No Amazonas, a Cia. Vitória Régia, sob a liderança de Nonato Tavares, utiliza o palco como espaço para dialogar com os desafios locais. Em um de seus recentes espetáculos – também uma retomada –, o musical O casamento da Filha de Mapinguari alerta para a ameaça de extinção do sauim-de-coleira, espécie endêmica de Manaus. Este espetáculo, ao se valer da lenda do Mapinguari, conecta arte e consciência ambiental, enquanto celebra as mitologias da floresta. Fundada em 1982, o coletivo registrou em livro a passagem dos 40 anos de história: Cia Vitória Régia 40 anos: tempo de teatro, pela editora Reggo.

Do Amapá, mas precisamente do bairro de Perpétuo Socorro em Macapá, o Teatro Marco Zero resiste desde 1986, a 38 anos, oferecendo oficinas e espetáculos teatrais, sobretudo ao público adolescente e infantil. Criado por Daniel de Rocha e Tina Araújo, que com recursos próprios criaram um teatro colado à sua casa, alimentam a imaginação do público frequentador, mas não só, já que deambulam por ruas e outros espaços.

De Roraima, o grupo familiar Locômbia Teatro de Andanças também é exemplo de resistência e resiliência. Nascido em Barranquilla, Colômbia, em 1984, dois anos depois passou a circular pelo mundo: Europa, Ásia, África e toda América. Em 2001 chegou ao Brasil e se fixou em Boa Vista em 2005, anos depois criaram o Espaço Circular Malokôbia em Cantá, na região metropolitana de da capital roraimense. Composto por Beatriz Brooks, Orlando Moreno e o filho Shanti Ram, integra estéticas distintas em seus espetáculos, como a indiana e a do palhaço Inca, Lhamichu. Dessa tradição andina, por exemplo, tem o espetáculo Mar Acá, que nesse ano de 2024 circulou o Palco Giratório.

De Belém do Pará, dentre tantos coletivos, o Grupo In Bust Teatro Com Bonecos, é um primor no que diz respeito ao teatro de pesquisa, focado no teatro de animação, vem desde 1996 (28 anos), realizando espetáculos delicados que misturam as diversas técnicas de bonecos, máscaras e outras modalidades. A última produção, Aguar o Tempo, é um primor de delicadeza que evoca as ancestralidades amazônidas e dos atores e da atriz. Em cena Adriana Cruz, Anibal Pacha, Cincinato Júnior e Paulo Ricardo, que contam com apoio técnico de Cris Costa.

Tais exemplos mostram que o teatro no Norte do Brasil, ainda que marginalizado nas grandes discussões culturais do país, é profundamente relevante. Ele resiste às adversidades – ausência de políticas públicas, falta de recursos e distâncias geográficas – e transforma cada apresentação em um ato político e poético. Esse teatro praticado às margens é, acima de tudo, um espaço de memória, denúncia e sonho. Narra as histórias que o progresso quis apagar, dá voz às comunidades silenciadas e reimagina futuros possíveis. Evoé a todos os teatros do Norte do Brasil! Pois enquanto houver floresta, rios e pessoas que acreditem no poder da arte, o teatro continuará a existir, como um farol de resistência e transformação.

[1] Professor ajunto da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; ator, diretor e dramaturgo; integrante do Teatro Ruante; autor dos livros Circo Teatro Palombar: somos periferia, potência criativa (Editora Fala, 2024) e Teatro de Rua: identidade, território (Editora Giostri, 2022).

* Publicado originalmente na Revista Azul Celeste: 35 anos de histórias trocadas (2025).