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quarta-feira, 9 de julho de 2025

Quando as contradições explodem

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

A valorização moral do trabalho como virtude não é uma noção atemporal ou natural, mas uma construção histórica que ganha força especialmente com a ética protestante calvinista. Essa perspectiva, que associa a prosperidade à graça divina e ao esforço individual, foi fundamental para justificar as desigualdades sociais ao longo da modernidade. Assim, os ricos seriam “trabalhadores virtuosos” e os pobres, vítimas da própria “preguiça” ou falha moral. Tal lógica é reciclada nos tempos atuais pela ideia de meritocracia e pela teologia da prosperidade, que insiste em afirmar que o sucesso é apenas fruto da dedicação pessoal, ignorando por completo as estruturas sociais que moldam as oportunidades.

Contudo, nas últimas décadas, com o avanço das tecnologias da informação e da comunicação, o capitalismo sofreu mutações profundas. A aceleração do tempo histórico e a compressão do espaço – fenômenos bem descritos por autores como David Harvey (1996) – fizeram emergir uma nova configuração social, marcada por serviços, virtualidade e imaterialidade da produção. A chamada sociedade de conhecimento, ou sociedade em rede, como define Manuel Castells, revela um deslocamento do eixo produtivo clássico para formas de trabalho cada vez mais simbólicas e cognitivas: “O que pensamos e como pensamos é expresso em bens serviços, produção material e intelectual, sejam alimentos, moradia, sistema de transporte e comunicação, mísseis, saúde, educação ou imagens” (Castells, 2011, p. 69).

Neste novo regime, as big techs tornam-se protagonistas. Empresas como Google, Amazon, Meta e outras dominam mercados, ditam comportamentos e capturam, por meio de algoritmos, nossos dados e nossas subjetividades. Para Marilena Chaui, essa nova configuração social se estrutura na “articulação entre ciência, tecnologia e setor empresarial” (2025, p. 119). A ideologia que a sustenta é a da competência, onde o valor do indivíduo é medido por sua capacidade de adaptação, produtividade e visibilidade.

A virtualidade deixou de ser apenas potência – como era concebida na filosofia – e passou a ser realidade concreta e dominante. Vivemos em um presente contínuo, sem memória do passado ou projeto de futuro. Nesse cenário, o sentimento de existência está atrelado à visibilidade nas redes: “O sentimento de que existir é ser visto, dando origem a uma subjetividade narcisista que, como já explicara Freud, é uma subjetividade depressiva” (Chaui, 2025, p. 121).

A consequência é uma explosão de doenças psíquicas, um mal-estar generalizado da civilização digital. Estamos, muitas vezes, trabalhando sem perceber – e sem remuneração – alimentando com nosso tempo, atenção e dados os sistemas que geram valor para poucos. As redes sociais se tornaram novas formas de exploração do trabalho, ao mesmo tempo em que promovem fragmentação e alienação.

Diante dessa realidade, a velha estrutura de classes persiste e se aprofunda, ainda que obscurecida pela ideologia. A desigualdade é visível a olho nu, mas a ideologia dominante esconde sua origem estrutural e tenta explicá-la como fruto de desvios individuais.

A ideologia distingue, assim, o de facto e o de jure: de fato há divisões sociais; de direito, a sociedade é uma, indivisa, homogênea e harmoniosa, de sorte que as divisões são meramente empíricas e suas causas devem ser encontradas em maus sujeitos sociais (facções, rebeldes, bandidos, preguiçosos, raças inferiores, caipiras, migrantes, imigrantes etc.) (Chaui, 2025, p. 125).

O resultado é a busca constante por inimigos internos ou externos, culpados pelo "fracasso" coletivo. Quando não se encontram inimigos fora, o olhar se volta contra si mesmo, num autojulgamento cruel: cada um se torna responsável pela sua própria derrota, reforçando o isolamento e a culpa.

A crítica de Chaui revela como a ideologia neoliberal opera por deslocamento: “A lógica da circulação das mercadorias, no lugar da lógica da produção; a lógica da informação e da comunicação, no lugar da lógica do trabalho; e a lógica da satisfação-insatisfação dos desejos individuais na sua intimidade, no lugar da lógica da luta de classes” (Chaui, 2025, p. 126).

Esse processo reforça a ideia de que não há alternativa ao sistema atual, mesmo diante de sua evidente falência civilizatória. Estamos, como já se disse, em uma fase histórica em que o velho mundo apodrece, mas o novo ainda não nasceu. A contradição, contudo, insiste em se manifestar. Apesar da ideologia buscar apagar a luta de classes, ela ressurge em manifestações, em greves, em rebeliões urbanas e também em movimentos difusos nas redes sociais.

Como na canção popular, “a vida vem em ondas”, tal onda, ainda que seja algo que vem e passa, deixa marcas. A onda do momento é o “nós contra eles” e o “Somos 99%” (uma releitura do Occupy Wall Street?) são expressões simbólicas da luta de classes que se manifesta dentro do próprio campo das big techs – afinal esse território é do capital, mas depende do uso diário dos/as trabalhadores/as. É preciso ter clareza de que: “A luta de classes não é um conflito, e sim uma contradição interna ao capitalismo entre duas classes que se definem uma pela negação da outra” (Chaui, 2025, p. 130).

A radicalização da desigualdade no Brasil torna essa contradição ainda mais evidente. De um lado, uma elite econômica concentrada no Congresso, formada por representantes do agronegócio, do sistema financeiro e de setores religiosos fundamentalistas. De outro, uma população exausta, precarizada, empurrada para a informalidade e convencida de que deve ser empreendedora de si mesma. A política neoliberal de Estado mínimo para os pobres e Estado máximo para os ricos – com isenções, subsídios e proteção jurídica – gerou uma explosão de insatisfação.

Mesmo com a crise das esquerdas, incapazes por ora de apresentar um projeto alternativo convincente, a realidade econômica bateu mais forte que o discurso dos coaches e dos televangelistas, adeptos da teologia da prosperidade. A fantasia da meritocracia não se sustenta diante da fome, do desemprego, da violência estrutural e da ausência de perspectivas reais para a maioria da população, especialmente a mais jovem.

Em tempos como o nosso, a lucidez crítica é não só um exercício de pensamento, mas uma forma de resistência. O primeiro passo é ver além das aparências e reconhecer que, apesar de todas as máscaras, o sistema continua sendo o mesmo: produtor de desigualdades e destruidor de futuros. Que os movimentos saiam das redes, do virtual, e ganhem o real, as ruas.

 

Referências

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

CHAUI, Marilena. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2025.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. 6ª ed.  São Paulo: Loyola, 1996.



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; graduado em História.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

A beleza inútil da Arte: regeneração humana em tempos de exaustão

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Somos seres que necessitam da beleza tanto quanto do alimento e do abrigo. A arte, em suas inúmeras manifestações, está presente em todas as sociedades humanas desde os tempos mais remotos. Pinturas rupestres, danças tribais, cantos ritualísticos, esculturas, narrativas orais — todas essas expressões revelam uma verdade fundamental: o impulso estético é constitutivo da experiência humana. Há, segundo Fischer (1973), uma necessidade de complementarmos nossas experiências, pois, ao sabermos que não somos únicos, temos o desejo de complemento no/a outro/a. Não vivemos apenas para sobreviver; somos seres desejantes, vivemos para sentir, sonhar e compartilhar significados — e é justamente isso que a arte nos proporciona, aí estaria uma de suas funções: a capacidade de vivermos uma experiência pela via estética.

Diferentemente dos objetos criados para fins práticos, a arte carrega em si um traço essencial: a não utilitariedade. Mesmo quando inserida em mercados que transformam criações em mercadorias altamente lucrativas, a essência da arte não está no lucro. Sua função não é funcionar, mas emocionar, inquietar, interrogar e, sobretudo, provocar. Essa ausência de finalidade prática é o que a torna tão poderosa. Vilém Flusser (2015), apresenta um outro aspecto da arte, que dialoga com que estamos defendendo: a capacidade de moldar as nossas experiências. O autor cita que no medievo tardio o Romance da Rosa passou a ser um modelo de amor romântico, adotado pela classe social nascente, a burguesia, a experiência foi depois universalizada, aos poucos, ao longo dos séculos e disseminados até hoje pela TV e pelos filmes estadunidenses, mas não só. Nas suas palavras: “O exemplo também mostra do que se trata na arte. Trata-se da elaboração e da comunicação de modelos para nossas experiências concretas do mundo. Toda experiência é modelada, programada pela arte. Todos os nossos prazeres e tristezas, todas as experiências das cores, dos sons, das formas, das tessituras, dos perfumes que nós temos, todo sentimento de amor e de raiva têm um modelo artístico. Nosso mundo é estruturado não somente pela nossa informação genética, mas também por nossa informação estética. Onde não há modelo estético, estamos ‘anestesiados’ = nós não temos experiência nenhuma. Nós dependemos da arte para poder perceber o mundo” (Flusser, 2015, p. 43). Mas, na lógica capitalista, tudo precisa servir para algo, gerar capital ou ao menos justificar seu uso com eficiência. Nesse sentido, os aspectos da arte aqui levantados, aparecem como gestos subversivos nesse sistema: uma oferenda ao sensível, ao gratuito, ao que escapa da lógica da reprodução incessante.

Davi Kopenawa (2015), xamã Yanomami e uma das grandes vozes indígenas do Brasil contemporâneo, tem razão ao nomear os não indígenas como o “povo da mercadoria”. Essa expressão, ao mesmo tempo poética e crítica, aponta para uma doença civilizatória: a transformação de tudo em objeto de troca. Na sanha de acumular e explorar, o povo da mercadoria destrói florestas, rios, montanhas e saberes ancestrais. Envenena o solo e a si mesmo. Corta árvores para plantar soja, seca nascentes para extrair ouro, devasta ecossistemas para produzir mais mercadorias, porém, perdem a capacidade de sonhar, e nisso vão se desumanizando e perdendo sua conexão mais profunda com a mãe terra.

A destruição ambiental não é apenas física; é também simbólica. O adoecimento do planeta está profundamente ligado ao nosso adoecimento psíquico. A ansiedade, o esgotamento mental, a sensação de vazio e a depressão que assolam milhões de pessoas – que Byun-Chul Han (2017) chama de sociedade do cansaço –, são, em grande parte, sintomas de um modo de vida que nos desliga da beleza, da contemplação, do tempo lento e da partilha sensível — valores fundamentais da experiência artística.

É por isso que precisamos da arte. Mais do que nunca, de todas as artes. Das que cantam, dançam, dramatizam, esculpem, bordam, esculpem o barro, improvisam com o corpo, das que narram o mundo visível e das que criam outros mundos. Elas nos espelham, refletem e refratam nossa realidade, ampliam a percepção e desorganizam as certezas. A arte não apenas embeleza a vida — ela nos oferece outros modos de habitá-la, inclusive outras maneiras de resistir, especialmente as artes que, de modo crítico, estão comprometidas com um mundo mais justo e igualitário.

Paradoxalmente, é justamente naquilo que o capitalismo considera “inútil” que reside a força mais profunda da arte. Uma cerâmica moldada à mão, um instrumento feito de madeira ancestral, uma peça de teatro encenada na praça, uma poesia que ressoa no corpo — essas experiências não têm finalidade prática imediata, e é por isso que nos tocam tão fundo. Elas não servem a um propósito utilitário, mas a um propósito humano. Tais características, num mundo regido pela lógica da eficiência e do lucro, é revolucionário.

A arte, em sua suposta “inutilidade”, é medicina. Não é chavão afirmar que a arte cura. Ela nos lembra que somos mais do que engrenagens de produção, que nosso valor não se mede pela produtividade, por isso nos regenera. Ela nos reconecta com o espanto, com a memória, com a possibilidade do afeto e da comunhão. Em tempos de colapso ambiental e psíquico, a arte é imprescindível — e pode nos salvar de nós mesmos ou de até onde nos levou o atual modo de produção. Evidente, que uma saída radical não se faz individualmente, mas é preciso nos reconectarmos socialmente, para tanto, mais uma vez precisamos de arte.

Assim, honremos sua “inutilidade”. Porque é nela que reside sua potência. Porque é dela que, ao revelar nosso aspecto mais humano, mais precisamos. Como afirma Michèle Petit, “O utilitário nunca basta. Talvez sejamos, antes de tudo, animais poéticos, pois os humanos criam obras de arte há mais de quarenta mil anos, bem antes de inventar a moeda ou a agricultura” (2024, p. 7).

Referências

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

FLUSSER, Vilém. A arte: o belo e o agradável. In: IANINI, Gilson; GARCIA, Douglas; FREITAS, Romero (Orgs.). Artefilosofia: antologia de textos estéticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 42-46.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Trad.: Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. Trad.: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cia das Letras, 2015.

PETIT, Michèle. Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise. Trad.: Raquel Camargo. São Paulo: 34, 2024.



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; graduado em História pela Universidade Cruzeiros do Sul; integrante do Teatro Ruante; autor dos livros Circo Teatro Palombar: somos periferia; potência criativa (Fala, 2024), Teatro de rua: identidade, território (Giostri, 2020); um dos fundadores e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

A cidade e o teatro

 

Adailtom Alves Teixeira[1]


Precisamos ir para as ruas! Temos de destruir esta arquitetura que separa os homens.
Julian Beck

Vivemos tempos em que as ruas voltam a pulsar. Em Porto Velho, a Praça Pequeno Vitor Emanuel, no bairro São João Bosco, foi recentemente ocupada por dois importantes eventos: o Festival PalhAçaí, realizado pelo Teatro Ruante nos dias 30 e 31 de maio e 1º de junho, e o Festival Amazônia Encena na Rua, realizado pelo O Imaginário entre os dias 4 e 8 de junho. Ambos devolveram à cidade aquilo que lhe pertence: o encontro entre o artista e o povo, o riso e a denúncia, o jogo e a reflexão. Foram noites agradáveis, sem paredes, sem palco elevado, sem ingresso.

Teatro Ruante - Selma Pavanelli, palhaça Tinnimm
Foto Maycon Moura

Os citados festivais não são apenas momentos de celebração artística, são afirmações políticas e existenciais. Em um mundo marcado pelo isolamento, pela especialização extrema e pela alienação — tristes heranças do capitalismo tardio —, ir para a rua é um ato de resistência. A arte, especialmente o teatro de rua, é uma ferramenta de humanização: cria laços, desafia certezas, convoca o coletivo.

O teatro de rua rompe com os muros simbólicos e concretos que separam as pessoas. Ele não exige trajes específicos, nem silêncios reverentes. Ele se impõe pelo gesto e pela palavra no meio da cidade, onde a vida pulsa. Nesse sentido, como bem apontava o ator e diretor Julian Beck, há dois tipos de teatro: o que adormece e o que desperta. Penso que o teatro que desperta é aquele que escolhe a rua como espaço de manifestação e a cidade como interlocutora. Evidente que tal pontuação não visa criar uma hierarquização entre os diversos teatros, não é esse o objetivo.

Historicamente, o teatro sempre esteve atrelado à polis. Na Grécia antiga, era uma ferramenta de reflexão cívica; na Idade Média, tomava as praças e ruas durante os mistérios religiosos e os ciclos festivos. Hoje, ao se colocar nos espaços abertos, ele pode recuperar esse papel de catalisador do debate público. No encontro entre artistas e público na cidade, seus problemas aparecem, como o transporte precário, a insegurança, a invisibilidade das populações marginalizadas, a especulação imobiliária e o abandono das praças públicas, mesmo que não estejam em cena.

Cabe mencionar que o teatro de rua é uma arte marginal, no melhor sentido da palavra, pois desafia a lógica mercantil ao oferecer acesso livre e transformar o transeunte em espectador, ao mesmo tempo em que ressignifica o espaço urbano como lugar de fruição estética e partilha simbólica. Ele descentraliza a arte não apenas geograficamente, mas também socialmente. Permite o acesso a quem não tem o hábito (ou o privilégio) de frequentar as salas fechadas.

O Imaginário - Edmar Leite, Flávia Diniz, Amanara Brandão
e Chicão Santos - Foto Maycon Moura.

Porto Velho, ao sediar festivais como o PalhAçaí e o Amazônia Encena na Rua, reafirma sua vocação para a arte pública e popular. Em meio ao concreto quente da cidade e o mormaço amazônico, surgem vozes, cores, gestos que nos tocam e nos fazem lembrar que o teatro é (e sempre foi) a arte do encontro.

Mais do que nunca, teatro de rua e cidade estão umbilicalmente ligados. A praça é palco, a rua é cenário, o público é cúmplice. E essa relação não é apenas estética, mas ética. Ao nos reunirmos no espaço aberto para rir, chorar, pensar e resistir juntos, criamos a possibilidade de uma cidade mais humana, mais sensível, mais consciente.

Vamos pra rua!



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; mestre e doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor e dramaturgo; articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

domingo, 8 de junho de 2025

A Força da Água jorra resistência popular

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Água não falta. Ela é negada.

Essa é a chave política — e histórica — que o espetáculo A Força da Água, do grupo cearense Pavilhão da Magnólia, leva ao público, revelando uma engrenagem social antiga, mas ainda em funcionamento. O coletivo com duas décadas de existência (haja resistência para tal longevidade em um país que padece de políticas públicas estruturantes para a cultura) e destaque nacional do Prêmio Shell 2025, justamente com o espetáculo em tela, aportou em Porto Velho dentro da programação do Palco Giratório, realizado pelo Sesc.

O espetáculo aborda as secas do Ceará — iniciando com foco na grande estiagem de 1877-1879, mas avançando por outros períodos — o trabalho reencena uma velha história de negação, deslocamento, repressão e invenção de inimigos. História que ainda escorre pelas frestas do presente.

A Força da Água, imagem retirada da internet.
Foto de Sérgio Lima

A escolha por uma cena documental, modalidade teatral ainda pouco praticada, exige que olhemos para as contradições expostas: entre o discurso oficial e a experiência vivida, entre o Estado e o povo, entre a necessidade coletiva e os interesses privados. O grupo, com cinco artistas em cena – Denise Costa, Eliel Carvalho, Jota Junior Santos, Nelson Albuquerque e Silvianne Lima –expôe como a falta d'água nunca foi um fenômeno puramente natural, mas o resultado de escolhas políticas e econômicas que sistematicamente colocaram a vida do povo como última prioridade — ou ainda, quando estes se organizam, tornam-se obstáculo à ordem vigente.

A opção estética de Pavilhão da Magnólia recusa o lugar comum do espetáculo neutro e mergulha numa linguagem de confronto. Aliás com a bela e boa dramaturgia e direção de Henrique Fontes, põe em cena uma teatralidade popular, uma narrativa épica e o corpo político em cena. Sim, pois os corpos levam consigo suas territorialidades. Não há personagens, mas há interpretação e muita teatralidade, operando o distanciamento brechtiano e alternando entre o testemunho e a fabulação, a memória e a denúncia, a metáfora e o discurso direto. A seca serve de testemunho histórico de um Estado que desertifica vidas para concentrar riquezas.

A montagem tem plena consciência da sua dimensão pedagógica e dialética. Faz do palco um espaço de historicização e questionamento: por que a água — condição sine qua non da vida — sempre foi negada ao povo cearense? (Tantas perguntas podem ser feitas sobre outras tantas negações...) E por que, diante de qualquer tentativa de organização popular, o Estado sempre recorreu à força repressiva e à construção de fantasmas ideológicos, como o comunismo, para legitimar a violência? Ou, ainda, valendo-se de líderes carismáticos para desmobilizar... (havemos sempre de pensar no presente!)

A encenação utiliza elementos simples e estilizados, canos, pedra, água (ao final, quando escorre um pequeno fio em uma pedra dura), mas não cai na armadilha do miserabilismo. Ao contrário: politiza a fome, a sede e outras tantas negações. Revela como o drama daquela população (só da cearense?) foi funcional à manutenção de um projeto de poder.

A seca de 1877-1879, com a qual se inicia a relação documental, dialoga diretamente com a realidade amazônica. Pois, naquele momento, ao invés de políticas assertivas, o que se viu foi o uso do deslocamento forçado de milhares de nordestinos para os seringais, no chamado primeiro ciclo da borracha. E é aí que, ainda que não mencione, o espetáculo alcança o nosso lugar com vigor crítico: lembrando que o Norte do país foi, historicamente, destino de uma diáspora forçada e silenciada, marcada pela submissão e pela espoliação. Ou, como afirma certo ditado popular: o Norte é neto do Nordeste.

A Força da Agua, imagem retirada da internet.
Foto de Sérgio Lima

O público de Porto Velho, pequeno, porém caloroso, que recebeu o espetáculo na noite de 7 de junho, no Teatro Banzeiros – aliás, bem significativo que um espetáculo sobre a água tenha ocorrido em uma casa com esse nome –, presenciou a representação e o reavivamento de sua memória, pois foi convidado não apenas a assistir, mas a reconhecer-se como parte de uma história que não começou (e nem termina) nos limites geográficos de um estado. A seca do Nordeste, especialmente do Ceará, ressoa nos rios do Norte e nas cicatrizes da borracha ainda visíveis nos rostos dos descendentes expulsos tempos atrás.

Cada elemento em cena tem função política e poética. A água, que só vemos ao final, é promessa de disputa e resistência, metáfora de que é preciso insistir e persistir, afinal, água mole em pedra dura... A trilha sonora, executada ao vivo, revela uma pluralidade sonora e rítmica, reforçando o necessário distanciamento crítico.

O espetáculo, por fim, não representa a seca como um passado encerrado, mas como estrutura permanente de negação, no qual o inimigo interno — ora o retirante, ora o comunista, ora o pobre organizado — é construído para justificar políticas de repressão e exclusão. A Força da Água é, assim, um ato de insurgência estética e política. Um teatro que se coloca em movimento com o povo, e não apenas sobre o povo. Um teatro que historia a miséria, confronta a memória oficial e expõe as fissuras de um país construído sobre o controle das águas e dos corpos. O espetáculo do Pavilhão da Magnólia reafirma a potência da linguagem teatral como arena de disputa. Uma arte que não sacia a sede, mas abastece nossa memória e aponta o dedo para quem insiste em fechar as torneiras. Metáfora!



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia, Curso Licenciatura em Teatro; mestre e doutor em Artes, área de concentração Artes Cênicas, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor, dramaturgo e integrante do Teatro Ruante.

O teatro praticado às margens*

 Adailtom Alves Teixeira[1]


A porção de terras, águas e florestas, que cobre a maior parte do território brasileiro, mais de 50%, chamado Amazônia, em que as distâncias são inimagináveis para muitas pessoas, onde os rios servem de veias para a vida, aqui também pulsa também a arte do teatro. Praticado às margens – das grandes cidades, das políticas culturais nacionais e das narrativas hegemônicas – o teatro do Norte do Brasil resiste como um testemunho de luta, criação e identidade.

Grande parte da integração forçada da região amazônica ao Brasil ocorreu sob o pretexto do progresso, sobretudo durante os períodos autoritários do Estado Novo (1937-1945) e da ditadura civil-militar (1964-1985). O lema "integrar para não entregar" mascarava projetos que devastaram comunidades originárias e ecossistemas, transformando a floresta em um laboratório de exploração econômica. Nesse contexto, e ao longo do século XX, o teatro percorreu altos e baixos, mas resistiu ecoando vozes e buscou compreender todo esse processo, ao mesmo tempo que denunciou as violências e propôs narrativas alternativas.

Focando apenas em algumas experiências mais longevas e alguns estados do Norte do Brasil, passo a mencionar aquelas mais próximas de nosso tempo histórico. De Rondônia, o Grupo Quebracabeça, fundado em 1982 por Alejandro Bedotti (argentino) e Ângela Cavalcante (fluminense) – mais que chegaram ao então Território ainda em 1979 –, tornou-se um dos símbolos dessa resistência. Em tempos em que a preocupação ecológica era periférica, o grupo já abordava temas como a ocupação do estado, chamada de colonização, e os impactos ambientais da exploração desenfreada, seja pela poluição dos rios, derrubada da floresta ou pela mineração. Apesar de ter realizado sua última apresentação há alguns anos, a chama criativa ainda persiste por meio de Ângela Cavalcante e Marlúcio Emídio, mantém o coletivo vivo, embora sem nenhuma obra em repertório,lá se vão mais de quatro décadas.

Ainda em Porto Velho, o Grupo Raízes do Porto, liderado por Suely Rodrigues desde 1991, personifica a diversidade e a inclusão que o teatro pode alcançar. Em palcos tradicionais, alternativos ou nas ruas, suas encenações dialogam com a cultura popular e tratam de questões como a violência de gênero e o universo infantil, revisitando lendas e brincadeiras populares. O grupo vem ganhando novo folego e retomando algumas de suas obras, como o infantil Minhoca na cabeça, com dramaturgia e direção da pernambucana Suely Rodrigues, obra que continua a encantar o público. Em cena Emilli Souza, Juraci Júnior, Kenny Frazão e Odinaldo Maurício. Outro espetáculo é Confidências de um espermatozoide careca de Carlos Eduardo Novaes, direção de Suely e atuação de Geovani Berno e Odinaldo Silva. Somam-se mais de três décadas e muitos espetáculos em sua trajetória.

Do Acre, destaca-se a Federação de Teatro do Acre (FETAC), fundada em 1978. Trata-se de uma instituição que reúne diversos coletivos em torno de si, a Federação mantém vivo o espírito do teatro na região, organizando festivais e oferecendo suporte a coletivos em todo o estado. Sua existência desafia o descaso e aponta para a potência do que foi (e é) o movimento federativo, que ainda reverbera em festivais e programações, promovendo a democratização do acesso ao teatro. A luta por políticas públicas é a tônica da instituições que congrega dezenas de grupos, como a Cia Visse Versa, criada em 2008 e com atuação muito significativa, pois além de seus espetáculos produz o Festival Matias de Teatro de Rua.

No Amazonas, a Cia. Vitória Régia, sob a liderança de Nonato Tavares, utiliza o palco como espaço para dialogar com os desafios locais. Em um de seus recentes espetáculos – também uma retomada –, o musical O casamento da Filha de Mapinguari alerta para a ameaça de extinção do sauim-de-coleira, espécie endêmica de Manaus. Este espetáculo, ao se valer da lenda do Mapinguari, conecta arte e consciência ambiental, enquanto celebra as mitologias da floresta. Fundada em 1982, o coletivo registrou em livro a passagem dos 40 anos de história: Cia Vitória Régia 40 anos: tempo de teatro, pela editora Reggo.

Do Amapá, mas precisamente do bairro de Perpétuo Socorro em Macapá, o Teatro Marco Zero resiste desde 1986, a 38 anos, oferecendo oficinas e espetáculos teatrais, sobretudo ao público adolescente e infantil. Criado por Daniel de Rocha e Tina Araújo, que com recursos próprios criaram um teatro colado à sua casa, alimentam a imaginação do público frequentador, mas não só, já que deambulam por ruas e outros espaços.

De Roraima, o grupo familiar Locômbia Teatro de Andanças também é exemplo de resistência e resiliência. Nascido em Barranquilla, Colômbia, em 1984, dois anos depois passou a circular pelo mundo: Europa, Ásia, África e toda América. Em 2001 chegou ao Brasil e se fixou em Boa Vista em 2005, anos depois criaram o Espaço Circular Malokôbia em Cantá, na região metropolitana de da capital roraimense. Composto por Beatriz Brooks, Orlando Moreno e o filho Shanti Ram, integra estéticas distintas em seus espetáculos, como a indiana e a do palhaço Inca, Lhamichu. Dessa tradição andina, por exemplo, tem o espetáculo Mar Acá, que nesse ano de 2024 circulou o Palco Giratório.

De Belém do Pará, dentre tantos coletivos, o Grupo In Bust Teatro Com Bonecos, é um primor no que diz respeito ao teatro de pesquisa, focado no teatro de animação, vem desde 1996 (28 anos), realizando espetáculos delicados que misturam as diversas técnicas de bonecos, máscaras e outras modalidades. A última produção, Aguar o Tempo, é um primor de delicadeza que evoca as ancestralidades amazônidas e dos atores e da atriz. Em cena Adriana Cruz, Anibal Pacha, Cincinato Júnior e Paulo Ricardo, que contam com apoio técnico de Cris Costa.

Tais exemplos mostram que o teatro no Norte do Brasil, ainda que marginalizado nas grandes discussões culturais do país, é profundamente relevante. Ele resiste às adversidades – ausência de políticas públicas, falta de recursos e distâncias geográficas – e transforma cada apresentação em um ato político e poético. Esse teatro praticado às margens é, acima de tudo, um espaço de memória, denúncia e sonho. Narra as histórias que o progresso quis apagar, dá voz às comunidades silenciadas e reimagina futuros possíveis. Evoé a todos os teatros do Norte do Brasil! Pois enquanto houver floresta, rios e pessoas que acreditem no poder da arte, o teatro continuará a existir, como um farol de resistência e transformação.

[1] Professor ajunto da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; ator, diretor e dramaturgo; integrante do Teatro Ruante; autor dos livros Circo Teatro Palombar: somos periferia, potência criativa (Editora Fala, 2024) e Teatro de Rua: identidade, território (Editora Giostri, 2022).

* Publicado originalmente na Revista Azul Celeste: 35 anos de histórias trocadas (2025).

domingo, 18 de maio de 2025

As instituições não conseguem acompanhar o tempo das redes

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Vivemos imersos na videopolítica — ou videosfera, como denominou Beatriz Sarlo (1997) —, em que a imagem, o espetáculo e a instantaneidade moldam a forma como a política é percebida, praticada e consumida. As novas mídias digitais, impulsionadas pelas transformações tecnológicas, passaram a ocupar o espaço simbólico da vida pública. Nesse cenário, os acontecimentos políticos são apresentados como eventos espontâneos, desprovidos de mediações institucionais, criando a ilusão de que tudo se dá em tempo real, à vista de todos e sem filtros.

No entanto, essa aparente transparência carrega um paradoxo: quanto mais imediata e acessível a política parece, mais ela se afasta da complexidade real das instituições democráticas. Para alcançar visibilidade nas redes, os temas precisam ser convertidos em escândalos, fragmentados em cortes curtos, viralizáveis, emocionalmente carregados. É nesse ponto que a midiosfera — especialmente as redes sociais — se impõe como um espaço onde o não-mediado ganha status de verdade. A política, então, passa a operar por meio de efeitos e sensações, em detrimento da análise e da deliberação.

Imagem retirada da internet, disponível em: 
https://encr.pw/0finC. Acesso em: 18 maio 2025.

O discurso político se transforma, adotando um estilo coloquial, informal e performático. No Brasil, esse novo estilo não apenas invadiu o marketing eleitoral, mas contaminou também os parlamentos, dos níveis municipais ao Congresso Nacional. A videopolítica dessacraliza a política: desfaz suas formalidades, suas liturgias e seus rituais institucionais. Com isso, o político passa a se apresentar como uma figura comum, alguém "como qualquer um", que compartilha dos sentimentos e angústias do cidadão médio. Essa estratégia, contudo, é uma construção cênica: a máscara da simplicidade esconde o cálculo de performance.

Essa suposta proximidade entre representante e representado, ao invés de fortalecer a democracia, tende a substituí-la por um simulacro. A figura pública se torna um entertainer, e o espaço político se converte em palco de um reality show permanente. Importa menos a capacidade de articular políticas públicas do que a habilidade de engajar, emocionar e viralizar. O político eficaz, hoje, é aquele que domina as lógicas do star system, muito mais do que os trâmites do regimento interno de uma casa legislativa.

Nesse ambiente, prevalece um discurso simplificado, maniqueísta e emocional. A política, transformada em espetáculo, passa a operar com base na lógica do “causa e efeito imediato”. O tempo da reflexão e do debate é suprimido pelo tempo do hype. A efemeridade das redes impõe uma lógica de presente contínuo que esvazia o passado — fundamental para o aprendizado democrático — e inviabiliza a construção de futuros coletivos. Vive-se à mercê do algoritmo, na urgência do agora, numa sucessão de "acontecimentos sem qualidades".

A consequência desse processo é dupla: por um lado, a institucionalidade é desacreditada, vista como lenta, burocrática e ineficaz; por outro, se naturaliza a ideia de que a política eficiente deve seguir o modelo das redes — rápida, direta, emocional. É a despolitização da política travestida de engajamento. Já não basta registrar os fatos, é preciso fabricá-los para que sejam registrados. O que importa não é a política como processo, mas como performance. A frase de impacto, o corte perfeito, o vídeo de 30 segundos — tudo precisa caber no tempo de um reel.

Essa lógica transforma a democracia em uma arena de opiniões em que se diluem as fronteiras entre especialização e achismo. A ilusão da igualdade plena entre todos os emissores produz uma “democracia de opinião” na qual um jogador de futebol e um chanceler são tratados como equivalentes ao comentar temas complexos de política internacional. A desierarquização simbólica da política e da intelectualidade convive com uma reierarquização baseada em carisma digital, número de seguidores e capacidade de viralização.

As instituições, baseadas em processos longos, contraditórios e, muitas vezes, pouco visíveis, não conseguem competir com a velocidade da rede. Seus ritos e protocolos parecem antiquados diante da fluidez da comunicação digital. Mas é justamente essa lentidão que garante a segurança jurídica, o contraditório, a proteção das minorias e o respeito aos direitos. A crise de legitimidade das instituições, agravada pelo ambiente digital, põe em risco as bases da democracia representativa.

Ao revisitarmos os alertas de Beatriz Sarlo, percebemos que o que estava em jogo em 1997 — a escolha entre a política do show business ou a reconfiguração crítica da representação democrática — tornou-se ainda mais urgente. Hoje, a televisão cedeu lugar ao celular, mas a lógica do espetáculo se aprofundou. A praça pública foi substituída pelo feed de notícias. A política, muitas vezes, se resume a uma sucessão de "lacrações" e indignações fugazes.

A pergunta que resta é: ainda é possível fazer política fora da lógica da midiosfera? Para além da exceção de alguns parlamentares comprometidos com o debate qualificado, existe horizonte fora da política-espetáculo? É preciso recolocar em cena uma política que reconheça a importância da escuta, da divergência, da construção coletiva — e que aceite que nem tudo cabe em 15 segundos. A política que vale a pena não é a que gera cliques, mas a que transforma realidades.

 

Referências

SARLO, Beatriz. Sete hipóteses sobre a videopolítica. In: SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. São Paulo: EdUSP, 1997.



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; graduado em História pela Universidade Cruzeiro do Sul.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Lei PNAB entra em contagem regressiva: Rondônia corre risco de perder recursos fundamentais para a cultura

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Faltam apenas 78 dias para que estados e municípios cumpram os prazos de execução da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), sob risco de perder os repasses previstos para o próximo ano. Apesar de os recursos já estarem depositados nas contas dos entes federativos que aderiram ao programa, a esmagadora maioria dos municípios de nosso estado ainda não lançou os editais públicos necessários para a aplicação do montante. A situação é especialmente preocupante quanto ao estado de Rondônia, onde o atraso não só compromete o volume de recursos destinado, mas também afeta todos os municípios – inclusive aqueles que, por motivos diversos, não aderiram formalmente à política.


A PNAB representa um avanço importante na consolidação de uma política pública de fomento cultural de caráter continuado no Brasil. Diferente das ações emergenciais anteriores, como a Lei Aldir Blanc (em sua primeira versão) e a Lei Paulo Gustavo, a PNAB visa estabelecer uma estrutura permanente de financiamento à cultura, respeitando a diversidade regional e promovendo a descentralização dos recursos. O não cumprimento dos prazos significa, na prática, abrir mão do desenvolvimento cultural, social e econômico local, bem como abrir mão da construção de uma identidade cultural forte em nosso estado.

A cultura é vetor de desenvolvimento. Gera emprego, renda, movimenta o turismo e fortalece a economia dos territórios, mas também pode ser motivo de orgulho de um povo, posto que as produções artística chegam onde outros fatores não costumam chegar. Em estados como Rondônia, onde ainda não há uma política pública de cultura efetiva e estruturada, o desperdício desses recursos equivale a negligenciar oportunidades reais de transformação. A ausência de editais e a morosidade na execução do que está previsto em lei vão na contramão da realidade vivida por centenas de trabalhadores da cultura que dependem desses incentivos para continuar produzindo.

O histórico recente não é animador. Mesmo com os impactos positivos gerados pela Lei Paulo Gustavo – responsável por fomentar a produção de filmes, mostras, festivais, espetáculos e outras expressões artísticas no estado, alguns já realizados e outros ainda em processo – a Secretaria de Estado da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer (Sejucel) não conseguiu executar a totalidade dos recursos. Muitos projetos contemplados sequer foram pagos, e parte do dinheiro precisou ser devolvido ao Tesouro Nacional. O temor da classe artística é que a história se repita com a PNAB.

Desde a primeira Lei Aldir Blanc, passando pela Paulo Gustavo até o atual marco da PNAB, o Conselho Estadual de Política Cultural (CEPC) e a sociedade civil organizada têm atuado incansavelmente na defesa da cultura em Rondônia. São esses atores que pressionam, dialogam e propõem soluções para garantir que os recursos cheguem à ponta. No entanto, a falta de prioridade política e administrativa tem minado os esforços coletivos.

Com o tempo se esgotando, é urgente que os gestores públicos ajam com responsabilidade. Cada dia perdido representa uma oportunidade a menos para centenas de fazedores de cultura, coletivos e comunidades tradicionais que, historicamente, têm sido invisibilizados pelas políticas estatais. Se o dinheiro está disponível, já em conta. Há que se perguntar:  O que falta aos gestores públicos? Só uma política pública efetiva e robusta será capaz de fortalecer a cultura e impulsionar o desenvolvimento do nosso estado. E a PNAB é o caminho para que isso ocorra.



[1] Professor Adjunto da Universidade Federal de Rondônia, na qual é Coordenador do Curso Licenciatura em Teatro; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); graduado em História pela Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul); um dos fundadores e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

terça-feira, 4 de março de 2025

MOSTRA GRITOS DO COTIDIANO - rompendo estruturas - 3ª edição

 

A Mostra Gritos do Cotidiano – Rompendo Estruturas é um projeto que surge em resposta ao alarmante cenário de feminicídios e violência no Brasil, conforme evidenciado pelo 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, o qual destaca um aumento preocupante desses índices. Diante dessa realidade, o projeto busca abordar e expor as diversas formas de violências enfrentadas pelas mulheres em seu cotidiano, muitas vezes relegadas ao silêncio e à invisibilidade social. Por meio de cenas e performances, a Mostra busca criar um espaço de expressão e conscientização sobre tais questões.

Nesta terceira edição, o projeto expande sua abordagem, concentrando-se nas vozes e experiências das mulheres. Para tanto, uma pergunta fundamental nos orienta: o que elas precisam gritar? A indagação busca dar voz às vivências, necessidades e demandas específicas das mulheres da região Norte, com destaque para Porto Velho/ Rondônia, reconhecendo suas experiências e os desafios que enfrentam em seu cotidiano. Ao todo serão três dias de programação, com duas apresentações diárias, seguidas de roda de conversa.


Selma Pavanelli, coordenadora do evento, afirma que “programações culturais que discutem a condição da mulher na sociedade brasileira é fundamental e é o que teremos”. Já a idealizadora da Mostra, Stephanie Matos, diz está muito feliz, porque “é a primeira vez que o evento é realizado de modo presencial, já que as edições anteriores ocorreram durante a pandemia”.

O projeto foi contemplado no EDITAL Nº 3/2024/SEJUCEL - SIEC - LPG – DEMAIS LINGUAGENS – BOLSAS PARA PRODUÇÃO DE ARTES INTEGRADAS RONDONIENSE – Eixo I - Categoria A – Evento Cultural.



SERVIÇO
Quando: 14, 15 e 16 de março de 2025

Horário: 19 h

Quanto: GRATUITO

Acessibilidade: Intérpretes de Libras

Local: Espaço Cultural Tapiri - Endereço: Rua Franklin Tavares, 1349, Bairro Pedrinhas – Porto Velho, RO


PROGRAMAÇÃO

DIA 14/03/25

Cotidiano-Mulher, atriz Selma Pavanelli - foto Karla Schmohl



COTIDIANO-MULHER narra o dia a dia de uma costureira e sua relação em um mundo marcado pela postura masculina-patriarcal. Nesse atravessamento e (des)encontros, aos poucos, desvelam-se as marcas e problemas enfrentados por esta mulher.

SELMA PAVANELLI – Produtora cultural, atriz, palhaça, figurinista, integrante fundadora do Teatro Ruante desde 2004. Seu trabalho, com mais de três décadas de atuação, é inspirado no universo popular e tendo por objetivo democratizar a arte e promover uma comunicação direta com seu público. A atriz tem como locus fundamental em sua trajetória os espaços abertos e alternativos, além disso vem promovendo vivências artísticas por meio de oficinas e cursos de teatro, de técnicas circenses e da palhaçaria.

Ficha Técnica
Texto: Andressa Ferrarezzi
Interpretação/adaptação: Selma Pavanelli
Direção: Adailtom Alves
Duração: 10 min.
Faixa etária: 14 anos

Carcinoma, atriz Cláudia Toledo - foto Elias Oliveira



CARCINOMA é o encontro da arte com a realidade. A experiência nua e crua que pulsa na veia em busca da cura do ser, do transcender! É sobreviver! A obra resultante de uma vivência vista com um outro olhar. É leveza consciente, vívida e envolvente. O limite entre o são e o insano. A atriz-personagem dialoga com a trajetória caminhada com o câncer de mama, e compartilha o que foi construído a partir das etapas vencidas, como num surto, prevalecendo a poética de uma dramaturgia que passeia entre o real e o imaginário.

CLAUDIA TOLEDO – Atriz, diretora, coreógrafa, figurinista, aderecista, dramaturga, e, atualmente, diretora da Cia. Visse e Versa (Rio Branco/AC) e membro fundadora deste coletivo, atuando também na produção de projetos de circulação, formação, difusão e de Festivais realizados pelo seu grupo e pela Federação de Teatro do Acre (FETAC), a qual é filiada desde 2008. Licenciada em Letras Inglês pela UFAC, com especialização em Educação Especial. Professora de Arte Educação, Dança e Teatro na rede pública e privada de ensino.

Ficha Técnica
Atuação, Dramaturgia e Figurino: Claudia Toledo
Direção Artística, Cenografia: Nonato Tavares
Assistência de Direção, Operação de Som, Iluminação: Lenine Alencar
Consultoria de Figurino e Design Gráfico: Ágatha Lima Rosa
Criação Sonora e Direção Musical: Diogo Soares
Efeitos Sonoros: Pedro Cruz (Rabeca), Mestre Matraca (Atabaque)
Mixagem e Masterização: Rislei Moreira
Fotografia: Elias Oliveira
Produção: Lenine Alencar
Duração: 40 minutos
Faixa Etária: 14 anos


RODA DE CONVERSA: Fórum Popular de Mulheres (FPM) – Criado 1992, motivado pela luta de mulheres ativistas dos movimentos popular e sindical e de organizações sociais que pautavam a defesa dos Direitos Humanos de Mulheres e Meninas, dos direitos sexuais e reprodutivos e pelo Fim da Violência contra mulher baseada em Gênero e do Feminicídio, no Município de Porto Velho-RO. O FPM também desenvolve projetos na área de artes, como o Canta Mulher.


DIA 15/03/25

Desnuda, performer Andéa Melo - foto Frank Busatto



DESNUDA é uma performance que busca uma contextualização sobre a sujeição da mulher e a naturalização das violências cotidianas. Partindo de algumas provocações, como a da pensadora G. Spivak em Pode o subalterno falar? e Bell Hooks em Erguer a voz, vem lembrar que ser mulher se mostra de forma interseccional e cada uma é atravessada por tipos de violências variadas. Além da denúncia, visa apontar uma possibilidade de confiar em si e no que sentimos, em conhecer nosso corpo, nossas dores, e em nosso processo de tentar se descontaminar do patriarcado.

ANDRÉA MELO é artista-pesquisadora do corpo na cena, com experiência em ensino, criação e estudos do movimento a partir da dança. Formada em Arte Visuais, pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR), é amazonense de nascença e rondoniense de vivência. Investiga as possibilidades entre a dança, a performance e as artes visuais.

Ficha Técnica
Intérprete-criadora: Andréa Melo
Texto: Aline Monteiro
Música: Suçuarana (Pietá)
Fotografia: Frank Busatto
Duração: 20 minutos
Faixa Etária: 18 anos

Elisabete Christofoletti, psicóloga - foto @imagemdointerior



RODA DE CONVERSA: O que grito?! – Uma oportunidade para o compartilhamento de falas e do aprendizado na escuta. Na relação com o/a outro/a, no acolhimento respeitoso e na escuta segura nos propomos a oferecer um espaço de elaboração das feridas que gravam fundo em nossas vivências quotidianas.

Mediação e condução: ELISABETE CHRISTOFOLETTI – Está na Amazônia há mais de 30 anos. Psicóloga, Analista Junguiana, profundamente comprometida com os Povos da Floresta. Faz parte do Coletivo Madeirista, um grupo de artistas multimídias, moradores na Amazônia; do MIIS-RO (Museu Imaterial da Imagem e do Som de RO); do Imagem do Interior; do AGPAA (Associação Grupo de Psicologia Analítica na Amazônia).

Ficha Técnica
Duração: 90min
Faixa Etária: 18 anos
Imagem: @imagemdointerior


DIA 16/03/25
Eva, atriz Kaline Leigue - foto Luisa Ritter


EVA é um solo poético que celebra o laço ancestral entre avó e neta, unindo palavra, canto e corpo. A obra mergulha na busca de pertencimento de uma artista, explorando sua ancestralidade e os afetos enraizados em sua história.

KALINE LEIGUE é atriz e realizadora audiovisual afroamazônida, com foco na ancestralidade, no teatro, na dança e no cinema. Produziu seis curtas-metragens selecionados para festivais nacionais. Participa de projetos culturais e compartilha experiências sobre metodologias para atores.

Ficha Técnica
Direção, dramaturgia e atuação: Kaline Leigue
Figurino e adereços: Valdelita Leigue
Sonoplastia: Junior Brum
Duração: 30 minutos
Faixa Etária: Livre

Incanto, cantora Izabela Lima - foto Iury Melo



INCANTO é um pocket show em que serão apresentadas canções interpretadas pelo trio Izabela Lima, Rose Abensur e Mauro Araújo. As canções autorais selecionadas para o palco pela cantora e compositora trazem mensagens de empoderamento feminino, encantamento das paixões e milagres cotidianos.

IZABELA LIMA é cantora, compositora e instrumentista. Busca incentivar a rede de mulheres artistas, seja como criadoras e/ou produtoras, por meio do Grupo de Mulheres que Escrevem Jardim das Evas, pela coordenação do Festival Sonora PVH de compositoras e pelo seu artivismo no Levante Feminista de Rondônia. Também atua com a produção de campanhas de ativismo por meio PPkast produções.

Ficha Técnica
Voz/percussão: Izabela Lima
Flauta transversal: Rose Abensur
Piano/teclado: Mauro Araújo
Duração: 30 minutos
Faixa Etária: Livre


RODA DE CONVERSA: Participações especiais do Levante Feminista de Rondônia (é uma frente suprapartidária formada por movimentos feministas, organizações e mulheres diversas que tem como objetivo sensibilizar, mobilizar e denunciar à sociedade o aumento dos casos de feminicidío, o descaso e a omissão do Estado, e ainda exigir medidas efetivas de proteção à vida das mulheres), Mulheres Atingidas por Barragens (Desde o início do MAB – Movimento dos Atingidos Por Barragens –, as mulheres tiveram um papel ativo e importante em sua construção e em todas as regiões do Brasil, seja nas tarefas de liderar as lutas, seja nas tarefas organizativas na comunidade que fortaleciam o movimento garantindo a organicidade das atividades. Cada região traz suas particularidades, o importante é evidenciar que as mulheres atingidas sempre estiveram em busca de seus direitos) e Rede Lilás (criada em 2010, com o objetivo de unir instituições, órgãos, agentes e pessoas que trabalham de forma integrada e cooperativa no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, visando sua proteção e atendimento).



CONTATOS:
Coordenação Geral: (69) 98164-3332 – Selma Pavanelli
Produção: (69) 98425-6408 – Stephanie Matos