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quarta-feira, 11 de junho de 2025

A cidade e o teatro

 

Adailtom Alves Teixeira[1]


Precisamos ir para as ruas! Temos de destruir esta arquitetura que separa os homens.
Julian Beck

Vivemos tempos em que as ruas voltam a pulsar. Em Porto Velho, a Praça Pequeno Vitor Emanuel, no bairro São João Bosco, foi recentemente ocupada por dois importantes eventos: o Festival PalhAçaí, realizado pelo Teatro Ruante nos dias 30 e 31 de maio e 1º de junho, e o Festival Amazônia Encena na Rua, realizado pelo O Imaginário entre os dias 4 e 8 de junho. Ambos devolveram à cidade aquilo que lhe pertence: o encontro entre o artista e o povo, o riso e a denúncia, o jogo e a reflexão. Foram noites agradáveis, sem paredes, sem palco elevado, sem ingresso.

Teatro Ruante - Selma Pavanelli, palhaça Tinnimm
Foto Maycon Moura

Os citados festivais não são apenas momentos de celebração artística, são afirmações políticas e existenciais. Em um mundo marcado pelo isolamento, pela especialização extrema e pela alienação — tristes heranças do capitalismo tardio —, ir para a rua é um ato de resistência. A arte, especialmente o teatro de rua, é uma ferramenta de humanização: cria laços, desafia certezas, convoca o coletivo.

O teatro de rua rompe com os muros simbólicos e concretos que separam as pessoas. Ele não exige trajes específicos, nem silêncios reverentes. Ele se impõe pelo gesto e pela palavra no meio da cidade, onde a vida pulsa. Nesse sentido, como bem apontava o ator e diretor Julian Beck, há dois tipos de teatro: o que adormece e o que desperta. Penso que o teatro que desperta é aquele que escolhe a rua como espaço de manifestação e a cidade como interlocutora. Evidente que tal pontuação não visa criar uma hierarquização entre os diversos teatros, não é esse o objetivo.

Historicamente, o teatro sempre esteve atrelado à polis. Na Grécia antiga, era uma ferramenta de reflexão cívica; na Idade Média, tomava as praças e ruas durante os mistérios religiosos e os ciclos festivos. Hoje, ao se colocar nos espaços abertos, ele pode recuperar esse papel de catalisador do debate público. No encontro entre artistas e público na cidade, seus problemas aparecem, como o transporte precário, a insegurança, a invisibilidade das populações marginalizadas, a especulação imobiliária e o abandono das praças públicas, mesmo que não estejam em cena.

Cabe mencionar que o teatro de rua é uma arte marginal, no melhor sentido da palavra, pois desafia a lógica mercantil ao oferecer acesso livre e transformar o transeunte em espectador, ao mesmo tempo em que ressignifica o espaço urbano como lugar de fruição estética e partilha simbólica. Ele descentraliza a arte não apenas geograficamente, mas também socialmente. Permite o acesso a quem não tem o hábito (ou o privilégio) de frequentar as salas fechadas.

O Imaginário - Edmar Leite, Flávia Diniz, Amanara Brandão
e Chicão Santos - Foto Maycon Moura.

Porto Velho, ao sediar festivais como o PalhAçaí e o Amazônia Encena na Rua, reafirma sua vocação para a arte pública e popular. Em meio ao concreto quente da cidade e o mormaço amazônico, surgem vozes, cores, gestos que nos tocam e nos fazem lembrar que o teatro é (e sempre foi) a arte do encontro.

Mais do que nunca, teatro de rua e cidade estão umbilicalmente ligados. A praça é palco, a rua é cenário, o público é cúmplice. E essa relação não é apenas estética, mas ética. Ao nos reunirmos no espaço aberto para rir, chorar, pensar e resistir juntos, criamos a possibilidade de uma cidade mais humana, mais sensível, mais consciente.

Vamos pra rua!



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; mestre e doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor e dramaturgo; articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

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