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domingo, 28 de setembro de 2025

A arte nasce da materialidade

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Vivemos tempos em que até o óbvio precisa ser reafirmado. Talvez por isso o título deste comentário, “A arte que se constitui da materialidade”, soe como uma tautologia, ou como aquilo que Nelson Rodrigues chamaria de “óbvio ululante”. Ainda assim, em meio a um cenário de urgências sociais e culturais, torna-se indispensável dizer o que parece evidente.

Na última sexta-feira, 27 de setembro, presenciei o lançamento de Eli e o Rio, novo livro de Matheus Pedrosa, editado pela Temática. A escolha do espaço foi precisa e simbólica: às margens do rio Madeira, no Complexo da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. De um lado, o rio, que é personagem central da narrativa; de outro, o traço de um projeto modernizador que marcou – e ainda marca – a vida da cidade e do estado. Ambos, rio e ferrovia, configuram o território e o imaginário que atravessam a obra. Explico-me.


A lembrança da lição de Fayga Ostrower é inevitável: em Criatividade e Processos de Criação (Vozes, 2014), a autora lembra que a matéria cultural “propõe os confins do possível para cada indivíduo”. A arte, compreendida como trabalho, nasce sempre de um chão concreto – um território, uma memória, uma experiência. É nesse ponto que a escrita de Pedrosa se enraíza. Natural de Porto Velho, o autor escreve a partir de seu quintal, mas, ao fazê-lo, alcança o universal. Cumpre, assim, a máxima atribuída a certo autor russo: cantar a aldeia é falar do mundo.

Formado em Direito e mestre em Estudos Literários pela Unir, Pedrosa alia vivência e técnica, mostrando que a criação literária exige mais que intuição: exige rigor e disciplina. Seu “livrinho” – no diminutivo apenas pelo formato físico, não pelo conteúdo – desvela questões cruciais do presente. Ali estão as dores de uma infância interrompida, os ecos da violência machista que insiste em assombrar Rondônia, a devastação dos recursos naturais cuja finitude não é mais segredo.

A materialidade cultural que constitui o autor transborda em sua escrita, mas ele não se limita a refletir o entorno. Vai além: convoca o leitor a pensar em como formar novas gerações capazes de enfrentar as necessidades de nosso tempo; denuncia o patriarcado como sistema corrosivo; e alerta para a relação predatória com a terra, que nos conduz a um horizonte de esgotamento. É impossível não recordar a advertência de Ailton Krenak em Futuro Ancestral (Companhia das Letras, 2022): “Os rios, esses seres sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.”

Eli e o Rio pode ser adquirido diretamente com o autor, na loja da editora Temática ou na Livraria Leitura. Como acontece com tantas obras regionais, a distribuição enfrenta obstáculos – mas essa é uma conversa para outro momento. Vale destacar ainda as ilustrações de Pedrosa, que dialogam com o texto e oferecem ao leitor um deleite visual.

O livro é um convite: revisitar a nossa relação com o território, a infância, o feminino (ainda que as personagens sejam masculinas) e a própria ideia de futuro. Uma obra pequena no tamanho, mas imensa naquilo que nos provoca a pensar.



[1] Professor do Departamento de Artes da Universidade Federal de Rondônia (Unir); mestre e doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); dramaturgo, diretor e ator; integrante do Teatro Ruante.

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