Adailtom
Alves Teixeira[1]
Vivemos tempos em que até o
óbvio precisa ser reafirmado. Talvez por isso o título deste comentário, “A
arte que se constitui da materialidade”, soe como uma tautologia, ou como
aquilo que Nelson Rodrigues chamaria de “óbvio ululante”. Ainda assim, em meio
a um cenário de urgências sociais e culturais, torna-se indispensável dizer o
que parece evidente.
Na última sexta-feira, 27 de setembro, presenciei o lançamento de Eli e o Rio, novo livro de Matheus Pedrosa, editado pela Temática. A escolha do espaço foi precisa e simbólica: às margens do rio Madeira, no Complexo da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. De um lado, o rio, que é personagem central da narrativa; de outro, o traço de um projeto modernizador que marcou – e ainda marca – a vida da cidade e do estado. Ambos, rio e ferrovia, configuram o território e o imaginário que atravessam a obra. Explico-me.
A lembrança da lição de Fayga
Ostrower é inevitável: em Criatividade e Processos de Criação (Vozes,
2014), a autora lembra que a matéria cultural “propõe os confins do possível
para cada indivíduo”. A arte, compreendida como trabalho, nasce sempre de um
chão concreto – um território, uma memória, uma experiência. É nesse ponto que
a escrita de Pedrosa se enraíza. Natural de Porto Velho, o autor escreve a
partir de seu quintal, mas, ao fazê-lo, alcança o universal. Cumpre, assim, a
máxima atribuída a certo autor russo: cantar a aldeia é falar do mundo.
Formado em Direito e mestre em
Estudos Literários pela Unir, Pedrosa alia vivência e técnica, mostrando que a
criação literária exige mais que intuição: exige rigor e disciplina. Seu “livrinho”
– no diminutivo apenas pelo formato físico, não pelo conteúdo – desvela
questões cruciais do presente. Ali estão as dores de uma infância interrompida,
os ecos da violência machista que insiste em assombrar Rondônia, a devastação
dos recursos naturais cuja finitude não é mais segredo.
A materialidade cultural que
constitui o autor transborda em sua escrita, mas ele não se limita a refletir o
entorno. Vai além: convoca o leitor a pensar em como formar novas gerações
capazes de enfrentar as necessidades de nosso tempo; denuncia o patriarcado
como sistema corrosivo; e alerta para a relação predatória com a terra, que nos
conduz a um horizonte de esgotamento. É impossível não recordar a advertência
de Ailton Krenak em Futuro Ancestral (Companhia das Letras, 2022): “Os
rios, esses seres sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me
sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já
estava aqui.”
Eli e o Rio pode
ser adquirido diretamente com o autor, na loja da editora Temática ou na
Livraria Leitura. Como acontece com tantas obras regionais, a distribuição
enfrenta obstáculos – mas essa é uma conversa para outro momento. Vale destacar
ainda as ilustrações de Pedrosa, que dialogam com o texto e oferecem ao leitor
um deleite visual.
O livro é um convite:
revisitar a nossa relação com o território, a infância, o feminino (ainda que
as personagens sejam masculinas) e a própria ideia de futuro. Uma obra pequena
no tamanho, mas imensa naquilo que nos provoca a pensar.
[1] Professor do Departamento de Artes da
Universidade Federal de Rondônia (Unir); mestre e doutor em Artes pelo
Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); dramaturgo,
diretor e ator; integrante do Teatro Ruante.
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