Adailtom Alves Teixeira[1]
Água não falta. Ela é negada.
Essa é a chave política — e
histórica — que o espetáculo A Força da Água, do grupo cearense Pavilhão
da Magnólia, leva ao público, revelando uma engrenagem social antiga, mas ainda
em funcionamento. O coletivo com duas décadas de existência (haja resistência
para tal longevidade em um país que padece de políticas públicas estruturantes
para a cultura) e destaque nacional do Prêmio Shell 2025, justamente com o espetáculo
em tela, aportou em Porto Velho dentro da programação do Palco Giratório,
realizado pelo Sesc.
O espetáculo aborda as secas do Ceará — iniciando com foco na grande estiagem de 1877-1879, mas avançando por outros períodos — o trabalho reencena uma velha história de negação, deslocamento, repressão e invenção de inimigos. História que ainda escorre pelas frestas do presente.
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A Força da Água, imagem retirada da internet. Foto de Sérgio Lima |
A escolha por uma cena
documental, modalidade teatral ainda pouco praticada, exige que olhemos para as
contradições expostas: entre o discurso oficial e a experiência vivida, entre o
Estado e o povo, entre a necessidade coletiva e os interesses privados. O grupo,
com cinco artistas em cena – Denise Costa, Eliel Carvalho, Jota Junior Santos,
Nelson Albuquerque e Silvianne Lima –expôe como a falta d'água nunca foi um
fenômeno puramente natural, mas o resultado de escolhas políticas e econômicas
que sistematicamente colocaram a vida do povo como última prioridade — ou ainda,
quando estes se organizam, tornam-se obstáculo à ordem vigente.
A opção estética de Pavilhão
da Magnólia recusa o lugar comum do espetáculo neutro e mergulha numa linguagem
de confronto. Aliás com a bela e boa dramaturgia e direção de Henrique Fontes, põe
em cena uma teatralidade popular, uma narrativa épica e o corpo político em
cena. Sim, pois os corpos levam consigo suas territorialidades. Não há
personagens, mas há interpretação e muita teatralidade, operando o
distanciamento brechtiano e alternando entre o testemunho e a fabulação, a
memória e a denúncia, a metáfora e o discurso direto. A seca serve de
testemunho histórico de um Estado que desertifica vidas para concentrar
riquezas.
A montagem tem plena
consciência da sua dimensão pedagógica e dialética. Faz do palco um espaço de
historicização e questionamento: por que a água — condição sine qua non da
vida — sempre foi negada ao povo cearense? (Tantas perguntas podem ser feitas
sobre outras tantas negações...) E por que, diante de qualquer tentativa de
organização popular, o Estado sempre recorreu à força repressiva e à construção
de fantasmas ideológicos, como o comunismo, para legitimar a violência? Ou,
ainda, valendo-se de líderes carismáticos para desmobilizar... (havemos sempre de
pensar no presente!)
A encenação utiliza elementos
simples e estilizados, canos, pedra, água (ao final, quando escorre um pequeno
fio em uma pedra dura), mas não cai na armadilha do miserabilismo. Ao
contrário: politiza a fome, a sede e outras tantas negações. Revela como o
drama daquela população (só da cearense?) foi funcional à manutenção de um
projeto de poder.
A seca de 1877-1879, com a qual se inicia a relação documental, dialoga diretamente com a realidade amazônica. Pois, naquele momento, ao invés de políticas assertivas, o que se viu foi o uso do deslocamento forçado de milhares de nordestinos para os seringais, no chamado primeiro ciclo da borracha. E é aí que, ainda que não mencione, o espetáculo alcança o nosso lugar com vigor crítico: lembrando que o Norte do país foi, historicamente, destino de uma diáspora forçada e silenciada, marcada pela submissão e pela espoliação. Ou, como afirma certo ditado popular: o Norte é neto do Nordeste.
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A Força da Agua, imagem retirada da internet. Foto de Sérgio Lima |
O público de Porto Velho,
pequeno, porém caloroso, que recebeu o espetáculo na noite de 7 de junho, no Teatro
Banzeiros – aliás, bem significativo que um espetáculo sobre a água tenha
ocorrido em uma casa com esse nome –, presenciou a representação e o
reavivamento de sua memória, pois foi convidado não apenas a assistir, mas a
reconhecer-se como parte de uma história que não começou (e nem termina) nos
limites geográficos de um estado. A seca do Nordeste, especialmente do Ceará,
ressoa nos rios do Norte e nas cicatrizes da borracha ainda visíveis nos rostos
dos descendentes expulsos tempos atrás.
Cada elemento em cena tem
função política e poética. A água, que só vemos ao final, é promessa de disputa
e resistência, metáfora de que é preciso insistir e persistir, afinal, água mole
em pedra dura... A trilha sonora, executada ao vivo, revela uma pluralidade
sonora e rítmica, reforçando o necessário distanciamento crítico.
O espetáculo, por fim, não
representa a seca como um passado encerrado, mas como estrutura permanente de
negação, no qual o inimigo interno — ora o retirante, ora o comunista, ora o
pobre organizado — é construído para justificar políticas de repressão e
exclusão. A Força da Água é, assim, um ato de insurgência estética e
política. Um teatro que se coloca em movimento com o povo, e não apenas sobre o
povo. Um teatro que historia a miséria, confronta a memória oficial e expõe as
fissuras de um país construído sobre o controle das águas e dos corpos. O
espetáculo do Pavilhão da Magnólia reafirma a potência da linguagem teatral
como arena de disputa. Uma arte que não sacia a sede, mas abastece nossa
memória e aponta o dedo para quem insiste em fechar as torneiras. Metáfora!
[1] Professor da Universidade Federal de
Rondônia, Curso Licenciatura em Teatro; mestre e doutor em Artes, área de
concentração Artes Cênicas, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual
Paulista (Unesp); ator, diretor, dramaturgo e integrante do Teatro Ruante.
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