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quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Pesquisa em teatro ou teatro-pesquisa

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Dizer que não existe teatro sem pesquisa é reconhecer que o teatro é uma arte da travessia. Nenhum gesto no palco é inocente: mesmo quando improvisado, traz consigo a memória de um corpo treinado, de um olhar que investigou, de uma experiência que se sedimentou em prática. O teatro é uma linguagem práxica porque só se revela no movimento; é, ao mesmo tempo, construção e descoberta. Nesse sentido, pesquisar não é apenas preparar um espetáculo, mas manter-se em estado de pergunta, de disponibilidade para o desconhecido.

De todo modo, é possível apontar uma divisão entre dois saberes: o teórico e o prático. O curioso, porém, é que ambos são teatro. O pesquisador que analisa estruturas cênicas, estéticas ou históricas, ainda que distante da ribalta, habita o mesmo terreno do ator que improvisa no ensaio. São olhares distintos sobre a mesma paisagem. O primeiro procura mapear, o segundo atravessar. Ambos, no entanto, caminham. E é esse caminhar que funda o teatro como campo de investigação permanente.

No fazer prático, a pesquisa precisa se reinventar a cada geração. Na contemporaneidade vive-se o encolhimento do tempo-espaço; a velocidade com que as informações circulam desafia a lentidão do processo teatral, que exige presença, repetição, escuta. Como criar nesse intervalo estreito, onde tudo parece já nascer obsoleto? Talvez a resposta esteja em aprofundar, e não em competir com a aceleração: um tempo outro, de resistência, em que a cena possa devolver densidade à experiência humana.

Há também a exacerbação do eu, essa necessidade de nossos dias de afirmar-se como singularidade. O teatro, uma arte coletiva por definição, vê-se tensionado por essa lógica. O ator não se esconde mais na personagem, mas a devora, a desmonta, a expõe em pedaços. O eu torna-se matéria cênica, ora como autobiografia, ora como fragmento de um corpo coletivo que insiste em se mostrar por meio da diferença.

Com isso, desmontam-se estruturas que pareciam sólidas. O texto dramático já não é mais o eixo absoluto: muitas vezes, a dramaturgia nasce do gesto, da imagem, da música, da relação direta com o espectador. A personagem, antes um ente fictício com arco psicológico e destino claro, dissolve-se em figuras fluidas, máscaras móveis, presenças instáveis. Tempo, espaço e ação (as tais unidades aristotélicas) cedem lugar a experiências descontínuas, fragmentadas, rizomáticas, como se a cena se tornasse um espelho estilhaçado do próprio mundo em que vivemos.

A pesquisa em teatro, então, não é um exercício acadêmico isolado, nem apenas uma etapa preparatória do ensaio. Ela é o próprio pulso dessa arte. É aquilo que impede a cena de repetir fórmulas, que a obriga a inventar modos novos de existir. O teatro só permanece vivo porque está sempre em pesquisa, seja no caderno do estudioso, seja no corpo do ator e da atriz, seja no olhar do/a espectador/a que, ao sair da sala, leva consigo perguntas que não se fecham.

No fundo, pesquisar teatro é aceitar que estamos sempre à beira de um precipício. Cada espetáculo é um risco: pode fracassar, pode iluminar, pode confundir. Mas é nesse risco que se dá a potência da pesquisa. Pesquisa que é sempre uma aposta no desconhecido, no que ainda não tem nome, no que só pode ser encontrado quando encenado.

Se pesquisar em teatro é colocar-se em estado de pergunta, então essa pergunta nunca é apenas estética: é também ética e política. O teatro, afinal, não se encerra no palco; ele transborda para a vida. Cada gesto cênico é também um gesto social, cada silêncio ressoa em um contexto histórico, cada corpo que se apresenta carrega marcas de classe, gênero, raça, território. A pesquisa em teatro, por mais formal que possa parecer, nunca se limita ao formalismo: ela toca a condição humana.

É nesse sentido que a linguagem afirma-se como espaço ético-político. Ético porque convoca responsabilidade: ao representar, inventar ou subverter imagens de mundo, ele questiona não só o que mostramos, mas o que escolhemos não mostrar. Político porque, ao reunir pessoas em torno de uma experiência comum, ele cria uma comunidade provisória, uma assembleia, um ensaio de convivência. Ocupando um mesmo espaço (sala, rua, alternativo etc.), espectadores e artistas compartilham tempo, espaço e risco: experimentam, por instantes, outros modos de ser e de estar juntos/as.

A pesquisa, nesse contexto, é a ferramenta que sustenta a densidade dessa experiência. Ela impede que o teatro seja mero entretenimento passageiro e o reafirma como laboratório da vida. Ao investigar novos modos de dramaturgia, ao desmontar personagens clássicas, ao tensionar as noções de tempo e espaço, o teatro não apenas reinventa a forma, mas também propõe outras maneiras de pensar o humano. Se a contemporaneidade nos força a viver no ritmo acelerado do consumo, o teatro-pesquisa pode abrir brechas para a pausa, para a escuta, para o encontro.

O teatro, quando arrisca, quando pesquisa, não se contenta em reproduzir a realidade, mas em  interrogar, contradizer, transfigurar. Isso é político. A cena pode denunciar violências invisíveis, revelar exclusões, mas também pode inventar futuros possíveis, mundos ainda não vividos. Nesse sentido, toda pesquisa teatral é também uma pesquisa da condição humana: como nos relacionamos, como sofremos, como desejamos, como resistimos.

Defender o teatro como espaço ético-político é, portanto, defendê-lo como lugar de responsabilidade e de liberdade. Responsabilidade porque cada cena que criamos ecoa em um mundo atravessado por desigualdades e urgências. Liberdade porque a pesquisa teatral insiste em imaginar outras realidades, mesmo que provisórias, mesmo que frágeis. Entre a memória e a invenção, a linguagem teatral se faz como um campo onde podemos experimentar, ainda que por instantes, o que significa ser humano, bem como o que poderia significar sê-lo de outra maneira.

O teatro-pesquisa pode vir a ser, em última instância, uma vigília de nossa humanidade. Não se trata apenas de projetar e erguer cenários o criar jogos de luzes, mas de acender fogueiras no escuro do nosso tempo. Cada ensaio é uma aposta no comum, cada espetáculo pode ser um chamado à responsabilidade de existir. No instante em que corpos e vozes se encontram, abre-se um território em que podemos ver de novo o que parecia invisível, dizer o que se queria calado, imaginar o que ainda não nasceu. O teatro, especialmente aquele que pode se dedicar à pesquisa, é uma resistência, pois lembra-nos de que não somos peças isoladas, mas parte de uma trama maior. Praticá-lo é defender a própria possibilidade de continuarmos humanos diante do abismo do tempo presente.



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (Unir); doutor e mestre em Artes (área de concentração Artes Cênicas) pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor e dramaturgo; integrante do Teatro Ruante e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

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