Adailtom
Alves Teixeira[1]
Dizer
que não existe teatro sem pesquisa é reconhecer que o teatro é uma arte da
travessia. Nenhum gesto no palco é inocente: mesmo quando improvisado, traz
consigo a memória de um corpo treinado, de um olhar que investigou, de uma
experiência que se sedimentou em prática. O teatro é uma linguagem práxica
porque só se revela no movimento; é, ao mesmo tempo, construção e descoberta.
Nesse sentido, pesquisar não é apenas preparar um espetáculo, mas manter-se em
estado de pergunta, de disponibilidade para o desconhecido.
De
todo modo, é possível apontar uma divisão entre dois saberes: o teórico e o
prático. O curioso, porém, é que ambos são teatro. O pesquisador que analisa
estruturas cênicas, estéticas ou históricas, ainda que distante da ribalta,
habita o mesmo terreno do ator que improvisa no ensaio. São olhares distintos
sobre a mesma paisagem. O primeiro procura mapear, o segundo atravessar. Ambos,
no entanto, caminham. E é esse caminhar que funda o teatro como campo de
investigação permanente.
No
fazer prático, a pesquisa precisa se reinventar a cada geração. Na contemporaneidade
vive-se o encolhimento do tempo-espaço; a velocidade com que as informações
circulam desafia a lentidão do processo teatral, que exige presença, repetição,
escuta. Como criar nesse intervalo estreito, onde tudo parece já nascer
obsoleto? Talvez a resposta esteja em aprofundar, e não em competir com a
aceleração: um tempo outro, de resistência, em que a cena possa devolver
densidade à experiência humana.
Há
também a exacerbação do eu, essa necessidade de nossos dias de afirmar-se como
singularidade. O teatro, uma arte coletiva por definição, vê-se tensionado por
essa lógica. O ator não se esconde mais na personagem, mas a devora, a
desmonta, a expõe em pedaços. O eu torna-se matéria cênica, ora como
autobiografia, ora como fragmento de um corpo coletivo que insiste em se
mostrar por meio da diferença.
Com
isso, desmontam-se estruturas que pareciam sólidas. O texto dramático já não é
mais o eixo absoluto: muitas vezes, a dramaturgia nasce do gesto, da imagem, da
música, da relação direta com o espectador. A personagem, antes um ente
fictício com arco psicológico e destino claro, dissolve-se em figuras fluidas,
máscaras móveis, presenças instáveis. Tempo, espaço e ação (as tais unidades
aristotélicas) cedem lugar a experiências descontínuas, fragmentadas,
rizomáticas, como se a cena se tornasse um espelho estilhaçado do próprio mundo
em que vivemos.
A
pesquisa em teatro, então, não é um exercício acadêmico isolado, nem apenas uma
etapa preparatória do ensaio. Ela é o próprio pulso dessa arte. É aquilo que
impede a cena de repetir fórmulas, que a obriga a inventar modos novos de
existir. O teatro só permanece vivo porque está sempre em pesquisa, seja no
caderno do estudioso, seja no corpo do ator e da atriz, seja no olhar do/a
espectador/a que, ao sair da sala, leva consigo perguntas que não se fecham.
No
fundo, pesquisar teatro é aceitar que estamos sempre à beira de um precipício.
Cada espetáculo é um risco: pode fracassar, pode iluminar, pode confundir. Mas
é nesse risco que se dá a potência da pesquisa. Pesquisa que é sempre uma
aposta no desconhecido, no que ainda não tem nome, no que só pode ser
encontrado quando encenado.
Se
pesquisar em teatro é colocar-se em estado de pergunta, então essa pergunta
nunca é apenas estética: é também ética e política. O teatro, afinal, não se
encerra no palco; ele transborda para a vida. Cada gesto cênico é também um
gesto social, cada silêncio ressoa em um contexto histórico, cada corpo que se
apresenta carrega marcas de classe, gênero, raça, território. A pesquisa em
teatro, por mais formal que possa parecer, nunca se limita ao formalismo: ela
toca a condição humana.
É
nesse sentido que a linguagem afirma-se como espaço ético-político. Ético
porque convoca responsabilidade: ao representar, inventar ou subverter imagens
de mundo, ele questiona não só o que mostramos, mas o que escolhemos não
mostrar. Político porque, ao reunir pessoas em torno de uma experiência comum,
ele cria uma comunidade provisória, uma assembleia, um ensaio de convivência. Ocupando
um mesmo espaço (sala, rua, alternativo etc.), espectadores e artistas
compartilham tempo, espaço e risco: experimentam, por instantes, outros modos
de ser e de estar juntos/as.
A
pesquisa, nesse contexto, é a ferramenta que sustenta a densidade dessa
experiência. Ela impede que o teatro seja mero entretenimento passageiro e o
reafirma como laboratório da vida. Ao investigar novos modos de dramaturgia, ao
desmontar personagens clássicas, ao tensionar as noções de tempo e espaço, o
teatro não apenas reinventa a forma, mas também propõe outras maneiras de
pensar o humano. Se a contemporaneidade nos força a viver no ritmo acelerado do
consumo, o teatro-pesquisa pode abrir brechas para a pausa, para a escuta, para
o encontro.
O
teatro, quando arrisca, quando pesquisa, não se contenta em reproduzir a
realidade, mas em interrogar, contradizer,
transfigurar. Isso é político. A cena pode denunciar violências invisíveis,
revelar exclusões, mas também pode inventar futuros possíveis, mundos ainda não
vividos. Nesse sentido, toda pesquisa teatral é também uma pesquisa da condição
humana: como nos relacionamos, como sofremos, como desejamos, como resistimos.
Defender
o teatro como espaço ético-político é, portanto, defendê-lo como lugar de
responsabilidade e de liberdade. Responsabilidade porque cada cena que criamos
ecoa em um mundo atravessado por desigualdades e urgências. Liberdade porque a
pesquisa teatral insiste em imaginar outras realidades, mesmo que provisórias,
mesmo que frágeis. Entre a memória e a invenção, a linguagem teatral se faz
como um campo onde podemos experimentar, ainda que por instantes, o que
significa ser humano, bem como o que poderia significar sê-lo de outra maneira.
O
teatro-pesquisa pode vir a ser, em última instância, uma vigília de nossa
humanidade. Não se trata apenas de projetar e erguer cenários o criar jogos de luzes,
mas de acender fogueiras no escuro do nosso tempo. Cada ensaio é uma aposta no
comum, cada espetáculo pode ser um chamado à responsabilidade de existir. No
instante em que corpos e vozes se encontram, abre-se um território em que
podemos ver de novo o que parecia invisível, dizer o que se queria calado,
imaginar o que ainda não nasceu. O teatro, especialmente aquele que pode se
dedicar à pesquisa, é uma resistência, pois lembra-nos de que não somos peças
isoladas, mas parte de uma trama maior. Praticá-lo é defender a própria
possibilidade de continuarmos humanos diante do abismo do tempo presente.
[1] Professor do Curso Licenciatura em
Teatro da Universidade Federal de Rondônia (Unir); doutor e mestre em Artes
(área de concentração Artes Cênicas) pelo Instituto de Artes da Universidade
Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor e dramaturgo; integrante do Teatro
Ruante e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.
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