Adailtom Alves Teixeira
A porção de terras, águas e florestas, que cobre a maior parte do território brasileiro, mais de 50%, chamado Amazônia, em que as distâncias são inimagináveis para muitas pessoas, onde os rios servem de veias para a vida, aqui também pulsa também a arte do teatro. Praticado às margens – das grandes cidades, das políticas culturais nacionais e das narrativas hegemônicas – o teatro do Norte do Brasil resiste como um testemunho de luta, criação e identidade.
Grande parte da integração forçada da região amazônica ao Brasil ocorreu sob o pretexto do progresso, sobretudo durante os períodos autoritários do Estado Novo (1937-1945) e da ditadura civil-militar (1964-1985). O lema "integrar para não entregar" mascarava projetos que devastaram comunidades originárias e ecossistemas, transformando a floresta em um laboratório de exploração econômica. Nesse contexto, e ao longo do século XX, o teatro percorreu altos e baixos, mas resistiu ecoando vozes e buscou compreender todo esse processo, ao mesmo tempo que denunciou as violências e propôs narrativas alternativas.
Focando apenas em algumas experiências mais longevas e alguns estados do Norte do Brasil, passo a mencionar aquelas mais próximas de nosso tempo histórico. De Rondônia, o Grupo Quebracabeça, fundado em 1982 por Alejandro Bedotti (argentino) e Ângela Cavalcante (fluminense) – mais que chegaram ao então Território ainda em 1979 –, tornou-se um dos símbolos dessa resistência. Em tempos em que a preocupação ecológica era periférica, o grupo já abordava temas como a ocupação do estado, chamada de colonização, e os impactos ambientais da exploração desenfreada, seja pela poluição dos rios, derrubada da floresta ou pela mineração. Apesar de ter realizado sua última apresentação há alguns anos, a chama criativa ainda persiste por meio de Ângela Cavalcante e Marlúcio Emídio, mantém o coletivo vivo, embora sem nenhuma obra em repertório,lá se vão mais de quatro décadas.
Ainda em Porto Velho, o Grupo Raízes do Porto, liderado por Suely Rodrigues desde 1991, personifica a diversidade e a inclusão que o teatro pode alcançar. Em palcos tradicionais, alternativos ou nas ruas, suas encenações dialogam com a cultura popular e tratam de questões como a violência de gênero e o universo infantil, revisitando lendas e brincadeiras populares. O grupo vem ganhando novo folego e retomando algumas de suas obras, como o infantil Minhoca na cabeça, com dramaturgia e direção da pernambucana Suely Rodrigues, obra que continua a encantar o público. Em cena Emilli Souza, Juraci Júnior, Kenny Frazão e Odinaldo Maurício. Outro espetáculo é Confidências de um espermatozoide careca de Carlos Eduardo Novaes, direção de Suely e atuação de Geovani Berno e Odinaldo Silva. Somam-se mais de três décadas e muitos espetáculos em sua trajetória.
Do Acre, destaca-se a Federação de Teatro do Acre (FETAC), fundada em 1978. Trata-se de uma instituição que reúne diversos coletivos em torno de si, a Federação mantém vivo o espírito do teatro na região, organizando festivais e oferecendo suporte a coletivos em todo o estado. Sua existência desafia o descaso e aponta para a potência do que foi (e é) o movimento federativo, que ainda reverbera em festivais e programações, promovendo a democratização do acesso ao teatro. A luta por políticas públicas é a tônica da instituições que congrega dezenas de grupos, como a Cia Visse Versa, criada em 2008 e com atuação muito significativa, pois além de seus espetáculos produz o Festival Matias de Teatro de Rua.
No Amazonas, a Cia. Vitória Régia, sob a liderança de Nonato Tavares, utiliza o palco como espaço para dialogar com os desafios locais. Em um de seus recentes espetáculos – também uma retomada –, o musical O casamento da Filha de Mapinguari alerta para a ameaça de extinção do sauim-de-coleira, espécie endêmica de Manaus. Este espetáculo, ao se valer da lenda do Mapinguari, conecta arte e consciência ambiental, enquanto celebra as mitologias da floresta. Fundada em 1982, o coletivo registrou em livro a passagem dos 40 anos de história: Cia Vitória Régia 40 anos: tempo de teatro, pela editora Reggo.
Do Amapá, mas precisamente do bairro de Perpétuo Socorro em Macapá, o Teatro Marco Zero resiste desde 1986, a 38 anos, oferecendo oficinas e espetáculos teatrais, sobretudo ao público adolescente e infantil. Criado por Daniel de Rocha e Tina Araújo, que com recursos próprios criaram um teatro colado à sua casa, alimentam a imaginação do público frequentador, mas não só, já que deambulam por ruas e outros espaços.
De Roraima, o grupo familiar Locômbia Teatro de Andanças também é exemplo de resistência e resiliência. Nascido em Barranquilla, Colômbia, em 1984, dois anos depois passou a circular pelo mundo: Europa, Ásia, África e toda América. Em 2001 chegou ao Brasil e se fixou em Boa Vista em 2005, anos depois criaram o Espaço Circular Malokôbia em Cantá, na região metropolitana de da capital roraimense. Composto por Beatriz Brooks, Orlando Moreno e o filho Shanti Ram, integra estéticas distintas em seus espetáculos, como a indiana e a do palhaço Inca, Lhamichu. Dessa tradição andina, por exemplo, tem o espetáculo Mar Acá, que nesse ano de 2024 circulou o Palco Giratório.
De Belém do Pará, dentre tantos coletivos, o Grupo In Bust Teatro Com Bonecos, é um primor no que diz respeito ao teatro de pesquisa, focado no teatro de animação, vem desde 1996 (28 anos), realizando espetáculos delicados que misturam as diversas técnicas de bonecos, máscaras e outras modalidades. A última produção, Aguar o Tempo, é um primor de delicadeza que evoca as ancestralidades amazônidas e dos atores e da atriz. Em cena Adriana Cruz, Anibal Pacha, Cincinato Júnior e Paulo Ricardo, que contam com apoio técnico de Cris Costa.
Tais exemplos mostram que o teatro no Norte do Brasil, ainda que marginalizado nas grandes discussões culturais do país, é profundamente relevante. Ele resiste às adversidades – ausência de políticas públicas, falta de recursos e distâncias geográficas – e transforma cada apresentação em um ato político e poético. Esse teatro praticado às margens é, acima de tudo, um espaço de memória, denúncia e sonho. Narra as histórias que o progresso quis apagar, dá voz às comunidades silenciadas e reimagina futuros possíveis. Evoé a todos os teatros do Norte do Brasil! Pois enquanto houver floresta, rios e pessoas que acreditem no poder da arte, o teatro continuará a existir, como um farol de resistência e transformação.
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