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sexta-feira, 20 de junho de 2025

A beleza inútil da Arte: regeneração humana em tempos de exaustão

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Somos seres que necessitam da beleza tanto quanto do alimento e do abrigo. A arte, em suas inúmeras manifestações, está presente em todas as sociedades humanas desde os tempos mais remotos. Pinturas rupestres, danças tribais, cantos ritualísticos, esculturas, narrativas orais — todas essas expressões revelam uma verdade fundamental: o impulso estético é constitutivo da experiência humana. Há, segundo Fischer (1973), uma necessidade de complementarmos nossas experiências, pois, ao sabermos que não somos únicos, temos o desejo de complemento no/a outro/a. Não vivemos apenas para sobreviver; somos seres desejantes, vivemos para sentir, sonhar e compartilhar significados — e é justamente isso que a arte nos proporciona, aí estaria uma de suas funções: a capacidade de vivermos uma experiência pela via estética.

Diferentemente dos objetos criados para fins práticos, a arte carrega em si um traço essencial: a não utilitariedade. Mesmo quando inserida em mercados que transformam criações em mercadorias altamente lucrativas, a essência da arte não está no lucro. Sua função não é funcionar, mas emocionar, inquietar, interrogar e, sobretudo, provocar. Essa ausência de finalidade prática é o que a torna tão poderosa. Vilém Flusser (2015), apresenta um outro aspecto da arte, que dialoga com que estamos defendendo: a capacidade de moldar as nossas experiências. O autor cita que no medievo tardio o Romance da Rosa passou a ser um modelo de amor romântico, adotado pela classe social nascente, a burguesia, a experiência foi depois universalizada, aos poucos, ao longo dos séculos e disseminados até hoje pela TV e pelos filmes estadunidenses, mas não só. Nas suas palavras: “O exemplo também mostra do que se trata na arte. Trata-se da elaboração e da comunicação de modelos para nossas experiências concretas do mundo. Toda experiência é modelada, programada pela arte. Todos os nossos prazeres e tristezas, todas as experiências das cores, dos sons, das formas, das tessituras, dos perfumes que nós temos, todo sentimento de amor e de raiva têm um modelo artístico. Nosso mundo é estruturado não somente pela nossa informação genética, mas também por nossa informação estética. Onde não há modelo estético, estamos ‘anestesiados’ = nós não temos experiência nenhuma. Nós dependemos da arte para poder perceber o mundo” (Flusser, 2015, p. 43). Mas, na lógica capitalista, tudo precisa servir para algo, gerar capital ou ao menos justificar seu uso com eficiência. Nesse sentido, os aspectos da arte aqui levantados, aparecem como gestos subversivos nesse sistema: uma oferenda ao sensível, ao gratuito, ao que escapa da lógica da reprodução incessante.

Davi Kopenawa (2015), xamã Yanomami e uma das grandes vozes indígenas do Brasil contemporâneo, tem razão ao nomear os não indígenas como o “povo da mercadoria”. Essa expressão, ao mesmo tempo poética e crítica, aponta para uma doença civilizatória: a transformação de tudo em objeto de troca. Na sanha de acumular e explorar, o povo da mercadoria destrói florestas, rios, montanhas e saberes ancestrais. Envenena o solo e a si mesmo. Corta árvores para plantar soja, seca nascentes para extrair ouro, devasta ecossistemas para produzir mais mercadorias, porém, perdem a capacidade de sonhar, e nisso vão se desumanizando e perdendo sua conexão mais profunda com a mãe terra.

A destruição ambiental não é apenas física; é também simbólica. O adoecimento do planeta está profundamente ligado ao nosso adoecimento psíquico. A ansiedade, o esgotamento mental, a sensação de vazio e a depressão que assolam milhões de pessoas – que Byun-Chul Han (2017) chama de sociedade do cansaço –, são, em grande parte, sintomas de um modo de vida que nos desliga da beleza, da contemplação, do tempo lento e da partilha sensível — valores fundamentais da experiência artística.

É por isso que precisamos da arte. Mais do que nunca, de todas as artes. Das que cantam, dançam, dramatizam, esculpem, bordam, esculpem o barro, improvisam com o corpo, das que narram o mundo visível e das que criam outros mundos. Elas nos espelham, refletem e refratam nossa realidade, ampliam a percepção e desorganizam as certezas. A arte não apenas embeleza a vida — ela nos oferece outros modos de habitá-la, inclusive outras maneiras de resistir, especialmente as artes que, de modo crítico, estão comprometidas com um mundo mais justo e igualitário.

Paradoxalmente, é justamente naquilo que o capitalismo considera “inútil” que reside a força mais profunda da arte. Uma cerâmica moldada à mão, um instrumento feito de madeira ancestral, uma peça de teatro encenada na praça, uma poesia que ressoa no corpo — essas experiências não têm finalidade prática imediata, e é por isso que nos tocam tão fundo. Elas não servem a um propósito utilitário, mas a um propósito humano. Tais características, num mundo regido pela lógica da eficiência e do lucro, é revolucionário.

A arte, em sua suposta “inutilidade”, é medicina. Não é chavão afirmar que a arte cura. Ela nos lembra que somos mais do que engrenagens de produção, que nosso valor não se mede pela produtividade, por isso nos regenera. Ela nos reconecta com o espanto, com a memória, com a possibilidade do afeto e da comunhão. Em tempos de colapso ambiental e psíquico, a arte é imprescindível — e pode nos salvar de nós mesmos ou de até onde nos levou o atual modo de produção. Evidente, que uma saída radical não se faz individualmente, mas é preciso nos reconectarmos socialmente, para tanto, mais uma vez precisamos de arte.

Assim, honremos sua “inutilidade”. Porque é nela que reside sua potência. Porque é dela que, ao revelar nosso aspecto mais humano, mais precisamos. Como afirma Michèle Petit, “O utilitário nunca basta. Talvez sejamos, antes de tudo, animais poéticos, pois os humanos criam obras de arte há mais de quarenta mil anos, bem antes de inventar a moeda ou a agricultura” (2024, p. 7).

Referências

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

FLUSSER, Vilém. A arte: o belo e o agradável. In: IANINI, Gilson; GARCIA, Douglas; FREITAS, Romero (Orgs.). Artefilosofia: antologia de textos estéticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 42-46.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Trad.: Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. Trad.: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cia das Letras, 2015.

PETIT, Michèle. Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise. Trad.: Raquel Camargo. São Paulo: 34, 2024.



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; graduado em História pela Universidade Cruzeiros do Sul; integrante do Teatro Ruante; autor dos livros Circo Teatro Palombar: somos periferia; potência criativa (Fala, 2024), Teatro de rua: identidade, território (Giostri, 2020); um dos fundadores e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

A cidade e o teatro

 

Adailtom Alves Teixeira[1]


Precisamos ir para as ruas! Temos de destruir esta arquitetura que separa os homens.
Julian Beck

Vivemos tempos em que as ruas voltam a pulsar. Em Porto Velho, a Praça Pequeno Vitor Emanuel, no bairro São João Bosco, foi recentemente ocupada por dois importantes eventos: o Festival PalhAçaí, realizado pelo Teatro Ruante nos dias 30 e 31 de maio e 1º de junho, e o Festival Amazônia Encena na Rua, realizado pelo O Imaginário entre os dias 4 e 8 de junho. Ambos devolveram à cidade aquilo que lhe pertence: o encontro entre o artista e o povo, o riso e a denúncia, o jogo e a reflexão. Foram noites agradáveis, sem paredes, sem palco elevado, sem ingresso.

Teatro Ruante - Selma Pavanelli, palhaça Tinnimm
Foto Maycon Moura

Os citados festivais não são apenas momentos de celebração artística, são afirmações políticas e existenciais. Em um mundo marcado pelo isolamento, pela especialização extrema e pela alienação — tristes heranças do capitalismo tardio —, ir para a rua é um ato de resistência. A arte, especialmente o teatro de rua, é uma ferramenta de humanização: cria laços, desafia certezas, convoca o coletivo.

O teatro de rua rompe com os muros simbólicos e concretos que separam as pessoas. Ele não exige trajes específicos, nem silêncios reverentes. Ele se impõe pelo gesto e pela palavra no meio da cidade, onde a vida pulsa. Nesse sentido, como bem apontava o ator e diretor Julian Beck, há dois tipos de teatro: o que adormece e o que desperta. Penso que o teatro que desperta é aquele que escolhe a rua como espaço de manifestação e a cidade como interlocutora. Evidente que tal pontuação não visa criar uma hierarquização entre os diversos teatros, não é esse o objetivo.

Historicamente, o teatro sempre esteve atrelado à polis. Na Grécia antiga, era uma ferramenta de reflexão cívica; na Idade Média, tomava as praças e ruas durante os mistérios religiosos e os ciclos festivos. Hoje, ao se colocar nos espaços abertos, ele pode recuperar esse papel de catalisador do debate público. No encontro entre artistas e público na cidade, seus problemas aparecem, como o transporte precário, a insegurança, a invisibilidade das populações marginalizadas, a especulação imobiliária e o abandono das praças públicas, mesmo que não estejam em cena.

Cabe mencionar que o teatro de rua é uma arte marginal, no melhor sentido da palavra, pois desafia a lógica mercantil ao oferecer acesso livre e transformar o transeunte em espectador, ao mesmo tempo em que ressignifica o espaço urbano como lugar de fruição estética e partilha simbólica. Ele descentraliza a arte não apenas geograficamente, mas também socialmente. Permite o acesso a quem não tem o hábito (ou o privilégio) de frequentar as salas fechadas.

O Imaginário - Edmar Leite, Flávia Diniz, Amanara Brandão
e Chicão Santos - Foto Maycon Moura.

Porto Velho, ao sediar festivais como o PalhAçaí e o Amazônia Encena na Rua, reafirma sua vocação para a arte pública e popular. Em meio ao concreto quente da cidade e o mormaço amazônico, surgem vozes, cores, gestos que nos tocam e nos fazem lembrar que o teatro é (e sempre foi) a arte do encontro.

Mais do que nunca, teatro de rua e cidade estão umbilicalmente ligados. A praça é palco, a rua é cenário, o público é cúmplice. E essa relação não é apenas estética, mas ética. Ao nos reunirmos no espaço aberto para rir, chorar, pensar e resistir juntos, criamos a possibilidade de uma cidade mais humana, mais sensível, mais consciente.

Vamos pra rua!



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; mestre e doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor e dramaturgo; articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

domingo, 8 de junho de 2025

A Força da Água jorra resistência popular

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Água não falta. Ela é negada.

Essa é a chave política — e histórica — que o espetáculo A Força da Água, do grupo cearense Pavilhão da Magnólia, leva ao público, revelando uma engrenagem social antiga, mas ainda em funcionamento. O coletivo com duas décadas de existência (haja resistência para tal longevidade em um país que padece de políticas públicas estruturantes para a cultura) e destaque nacional do Prêmio Shell 2025, justamente com o espetáculo em tela, aportou em Porto Velho dentro da programação do Palco Giratório, realizado pelo Sesc.

O espetáculo aborda as secas do Ceará — iniciando com foco na grande estiagem de 1877-1879, mas avançando por outros períodos — o trabalho reencena uma velha história de negação, deslocamento, repressão e invenção de inimigos. História que ainda escorre pelas frestas do presente.

A Força da Água, imagem retirada da internet.
Foto de Sérgio Lima

A escolha por uma cena documental, modalidade teatral ainda pouco praticada, exige que olhemos para as contradições expostas: entre o discurso oficial e a experiência vivida, entre o Estado e o povo, entre a necessidade coletiva e os interesses privados. O grupo, com cinco artistas em cena – Denise Costa, Eliel Carvalho, Jota Junior Santos, Nelson Albuquerque e Silvianne Lima –expôe como a falta d'água nunca foi um fenômeno puramente natural, mas o resultado de escolhas políticas e econômicas que sistematicamente colocaram a vida do povo como última prioridade — ou ainda, quando estes se organizam, tornam-se obstáculo à ordem vigente.

A opção estética de Pavilhão da Magnólia recusa o lugar comum do espetáculo neutro e mergulha numa linguagem de confronto. Aliás com a bela e boa dramaturgia e direção de Henrique Fontes, põe em cena uma teatralidade popular, uma narrativa épica e o corpo político em cena. Sim, pois os corpos levam consigo suas territorialidades. Não há personagens, mas há interpretação e muita teatralidade, operando o distanciamento brechtiano e alternando entre o testemunho e a fabulação, a memória e a denúncia, a metáfora e o discurso direto. A seca serve de testemunho histórico de um Estado que desertifica vidas para concentrar riquezas.

A montagem tem plena consciência da sua dimensão pedagógica e dialética. Faz do palco um espaço de historicização e questionamento: por que a água — condição sine qua non da vida — sempre foi negada ao povo cearense? (Tantas perguntas podem ser feitas sobre outras tantas negações...) E por que, diante de qualquer tentativa de organização popular, o Estado sempre recorreu à força repressiva e à construção de fantasmas ideológicos, como o comunismo, para legitimar a violência? Ou, ainda, valendo-se de líderes carismáticos para desmobilizar... (havemos sempre de pensar no presente!)

A encenação utiliza elementos simples e estilizados, canos, pedra, água (ao final, quando escorre um pequeno fio em uma pedra dura), mas não cai na armadilha do miserabilismo. Ao contrário: politiza a fome, a sede e outras tantas negações. Revela como o drama daquela população (só da cearense?) foi funcional à manutenção de um projeto de poder.

A seca de 1877-1879, com a qual se inicia a relação documental, dialoga diretamente com a realidade amazônica. Pois, naquele momento, ao invés de políticas assertivas, o que se viu foi o uso do deslocamento forçado de milhares de nordestinos para os seringais, no chamado primeiro ciclo da borracha. E é aí que, ainda que não mencione, o espetáculo alcança o nosso lugar com vigor crítico: lembrando que o Norte do país foi, historicamente, destino de uma diáspora forçada e silenciada, marcada pela submissão e pela espoliação. Ou, como afirma certo ditado popular: o Norte é neto do Nordeste.

A Força da Agua, imagem retirada da internet.
Foto de Sérgio Lima

O público de Porto Velho, pequeno, porém caloroso, que recebeu o espetáculo na noite de 7 de junho, no Teatro Banzeiros – aliás, bem significativo que um espetáculo sobre a água tenha ocorrido em uma casa com esse nome –, presenciou a representação e o reavivamento de sua memória, pois foi convidado não apenas a assistir, mas a reconhecer-se como parte de uma história que não começou (e nem termina) nos limites geográficos de um estado. A seca do Nordeste, especialmente do Ceará, ressoa nos rios do Norte e nas cicatrizes da borracha ainda visíveis nos rostos dos descendentes expulsos tempos atrás.

Cada elemento em cena tem função política e poética. A água, que só vemos ao final, é promessa de disputa e resistência, metáfora de que é preciso insistir e persistir, afinal, água mole em pedra dura... A trilha sonora, executada ao vivo, revela uma pluralidade sonora e rítmica, reforçando o necessário distanciamento crítico.

O espetáculo, por fim, não representa a seca como um passado encerrado, mas como estrutura permanente de negação, no qual o inimigo interno — ora o retirante, ora o comunista, ora o pobre organizado — é construído para justificar políticas de repressão e exclusão. A Força da Água é, assim, um ato de insurgência estética e política. Um teatro que se coloca em movimento com o povo, e não apenas sobre o povo. Um teatro que historia a miséria, confronta a memória oficial e expõe as fissuras de um país construído sobre o controle das águas e dos corpos. O espetáculo do Pavilhão da Magnólia reafirma a potência da linguagem teatral como arena de disputa. Uma arte que não sacia a sede, mas abastece nossa memória e aponta o dedo para quem insiste em fechar as torneiras. Metáfora!



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia, Curso Licenciatura em Teatro; mestre e doutor em Artes, área de concentração Artes Cênicas, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor, dramaturgo e integrante do Teatro Ruante.

O teatro praticado às margens*

 Adailtom Alves Teixeira[1]


A porção de terras, águas e florestas, que cobre a maior parte do território brasileiro, mais de 50%, chamado Amazônia, em que as distâncias são inimagináveis para muitas pessoas, onde os rios servem de veias para a vida, aqui também pulsa também a arte do teatro. Praticado às margens – das grandes cidades, das políticas culturais nacionais e das narrativas hegemônicas – o teatro do Norte do Brasil resiste como um testemunho de luta, criação e identidade.

Grande parte da integração forçada da região amazônica ao Brasil ocorreu sob o pretexto do progresso, sobretudo durante os períodos autoritários do Estado Novo (1937-1945) e da ditadura civil-militar (1964-1985). O lema "integrar para não entregar" mascarava projetos que devastaram comunidades originárias e ecossistemas, transformando a floresta em um laboratório de exploração econômica. Nesse contexto, e ao longo do século XX, o teatro percorreu altos e baixos, mas resistiu ecoando vozes e buscou compreender todo esse processo, ao mesmo tempo que denunciou as violências e propôs narrativas alternativas.

Focando apenas em algumas experiências mais longevas e alguns estados do Norte do Brasil, passo a mencionar aquelas mais próximas de nosso tempo histórico. De Rondônia, o Grupo Quebracabeça, fundado em 1982 por Alejandro Bedotti (argentino) e Ângela Cavalcante (fluminense) – mais que chegaram ao então Território ainda em 1979 –, tornou-se um dos símbolos dessa resistência. Em tempos em que a preocupação ecológica era periférica, o grupo já abordava temas como a ocupação do estado, chamada de colonização, e os impactos ambientais da exploração desenfreada, seja pela poluição dos rios, derrubada da floresta ou pela mineração. Apesar de ter realizado sua última apresentação há alguns anos, a chama criativa ainda persiste por meio de Ângela Cavalcante e Marlúcio Emídio, mantém o coletivo vivo, embora sem nenhuma obra em repertório,lá se vão mais de quatro décadas.

Ainda em Porto Velho, o Grupo Raízes do Porto, liderado por Suely Rodrigues desde 1991, personifica a diversidade e a inclusão que o teatro pode alcançar. Em palcos tradicionais, alternativos ou nas ruas, suas encenações dialogam com a cultura popular e tratam de questões como a violência de gênero e o universo infantil, revisitando lendas e brincadeiras populares. O grupo vem ganhando novo folego e retomando algumas de suas obras, como o infantil Minhoca na cabeça, com dramaturgia e direção da pernambucana Suely Rodrigues, obra que continua a encantar o público. Em cena Emilli Souza, Juraci Júnior, Kenny Frazão e Odinaldo Maurício. Outro espetáculo é Confidências de um espermatozoide careca de Carlos Eduardo Novaes, direção de Suely e atuação de Geovani Berno e Odinaldo Silva. Somam-se mais de três décadas e muitos espetáculos em sua trajetória.

Do Acre, destaca-se a Federação de Teatro do Acre (FETAC), fundada em 1978. Trata-se de uma instituição que reúne diversos coletivos em torno de si, a Federação mantém vivo o espírito do teatro na região, organizando festivais e oferecendo suporte a coletivos em todo o estado. Sua existência desafia o descaso e aponta para a potência do que foi (e é) o movimento federativo, que ainda reverbera em festivais e programações, promovendo a democratização do acesso ao teatro. A luta por políticas públicas é a tônica da instituições que congrega dezenas de grupos, como a Cia Visse Versa, criada em 2008 e com atuação muito significativa, pois além de seus espetáculos produz o Festival Matias de Teatro de Rua.

No Amazonas, a Cia. Vitória Régia, sob a liderança de Nonato Tavares, utiliza o palco como espaço para dialogar com os desafios locais. Em um de seus recentes espetáculos – também uma retomada –, o musical O casamento da Filha de Mapinguari alerta para a ameaça de extinção do sauim-de-coleira, espécie endêmica de Manaus. Este espetáculo, ao se valer da lenda do Mapinguari, conecta arte e consciência ambiental, enquanto celebra as mitologias da floresta. Fundada em 1982, o coletivo registrou em livro a passagem dos 40 anos de história: Cia Vitória Régia 40 anos: tempo de teatro, pela editora Reggo.

Do Amapá, mas precisamente do bairro de Perpétuo Socorro em Macapá, o Teatro Marco Zero resiste desde 1986, a 38 anos, oferecendo oficinas e espetáculos teatrais, sobretudo ao público adolescente e infantil. Criado por Daniel de Rocha e Tina Araújo, que com recursos próprios criaram um teatro colado à sua casa, alimentam a imaginação do público frequentador, mas não só, já que deambulam por ruas e outros espaços.

De Roraima, o grupo familiar Locômbia Teatro de Andanças também é exemplo de resistência e resiliência. Nascido em Barranquilla, Colômbia, em 1984, dois anos depois passou a circular pelo mundo: Europa, Ásia, África e toda América. Em 2001 chegou ao Brasil e se fixou em Boa Vista em 2005, anos depois criaram o Espaço Circular Malokôbia em Cantá, na região metropolitana de da capital roraimense. Composto por Beatriz Brooks, Orlando Moreno e o filho Shanti Ram, integra estéticas distintas em seus espetáculos, como a indiana e a do palhaço Inca, Lhamichu. Dessa tradição andina, por exemplo, tem o espetáculo Mar Acá, que nesse ano de 2024 circulou o Palco Giratório.

De Belém do Pará, dentre tantos coletivos, o Grupo In Bust Teatro Com Bonecos, é um primor no que diz respeito ao teatro de pesquisa, focado no teatro de animação, vem desde 1996 (28 anos), realizando espetáculos delicados que misturam as diversas técnicas de bonecos, máscaras e outras modalidades. A última produção, Aguar o Tempo, é um primor de delicadeza que evoca as ancestralidades amazônidas e dos atores e da atriz. Em cena Adriana Cruz, Anibal Pacha, Cincinato Júnior e Paulo Ricardo, que contam com apoio técnico de Cris Costa.

Tais exemplos mostram que o teatro no Norte do Brasil, ainda que marginalizado nas grandes discussões culturais do país, é profundamente relevante. Ele resiste às adversidades – ausência de políticas públicas, falta de recursos e distâncias geográficas – e transforma cada apresentação em um ato político e poético. Esse teatro praticado às margens é, acima de tudo, um espaço de memória, denúncia e sonho. Narra as histórias que o progresso quis apagar, dá voz às comunidades silenciadas e reimagina futuros possíveis. Evoé a todos os teatros do Norte do Brasil! Pois enquanto houver floresta, rios e pessoas que acreditem no poder da arte, o teatro continuará a existir, como um farol de resistência e transformação.

[1] Professor ajunto da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; ator, diretor e dramaturgo; integrante do Teatro Ruante; autor dos livros Circo Teatro Palombar: somos periferia, potência criativa (Editora Fala, 2024) e Teatro de Rua: identidade, território (Editora Giostri, 2022).

* Publicado originalmente na Revista Azul Celeste: 35 anos de histórias trocadas (2025).