Adailtom
Alves Teixeira[1]
Alejandro Ulises Bedotti nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1954. Estudou na Escuela de Teatro em La Plata. Veio ao Brasil na década de 1970, passando pelo Rio de Janeiro, conheceu Ângela Cavalcante, parceira de arte e, por muitos anos, de vida. Mesmo separados, a parceria permaneceu. Ambos chegaram em 1979, quando ainda era Território, passando antes por Rio Branco/AC para ministrar uma oficina de teatro. Eram anos de chumbo, mas a ditadura já se esboroava e se encaminhava pro seu final.
Alejandro Bedotti - Arq. Talia Cavalcante |
Em 1980, Bedotti foi trabalhar no Sesc/RO, mas, por desacordos de quem comandava aquela instituição naquele período, foi demitido ainda no mesmo ano. Então, seguiu em viagem por outros estados da Região Norte e depois por países da América Central com o Grupo del Silencio. Retornando em 1981, quando da mudança de status de Rondônia, de Território para Unidade Federativa – mais uma estrela na bandeira brasileira.
Bedotti é mímico, diretor e dramaturgo e juntamente
com a atriz Ângela Cavalcante criou em Porto Velho os grupos Cipó e Quebracabeça. Teço aqui um pequeno comentário sobre sua faceta de dramaturgo,
destacando um de seus textos, Pedros e
Pedros na conquista do Eldorado. A dramaturgia toma como estrutura um outro
texto, Aquele que diz sim e aquele que
diz não de Bertolt Brecht (1898-1956), que por sua vez se baseou em uma
lenda chinesa. Como cantou Chico Buarque em Rebichada:
Essa história é mais velha que a história
Dos tempos de glória do velho barão
Quem não sabe de cor essa história
Refresque a memória e preste atenção
Não sou eu quem repete essa história
É a história que adora uma repetição
Uma repetição[2]
Assim, as estruturas vão se repetindo, mas
se transformando. Na história de Bedotti a trupe de artistas abre o espetáculo contando
de onde tiraram a ideia que vão apresentar, falam do autor alemão e afirmam
epicamente: “Nas coisas da dialética / o negócio é dialogar”. O texto se vale
da poesia popular, é todo ele rimado. Desde o início a conquista do Eldorado e
para quem ele se destina está anunciado, como bem “informa” ou vende a
personagem Radialista:
Atenção
senhores ouvintes
Do
Norte do país nos chega uma notícia
sensacional
Se
quiser enricar é só ir para Eldorado
Que
não vai se dar mal
Troque
seu chimarrão por uma mandioca
E
sua chinoca por uma cabocla! (BEDOTTI, s.d., p. 1-2)
O material datilografado a que tive acesso
apresenta, por meio de manuscritos, diversas indicações da montagem, como o uso
de cartazes, momentos que entra a música, nome de atores e atrizes (Ângela
Cavalcante e o poeta Mado, por exemplo), trechos que foram cortados na
encenação e com quantas pessoas é possível realizar a montagem: três atrizes e
três atores.
A história, como já está claro, é sobre as
terras prometidas aos colonos, uma promessa de riqueza certeira, mas a coisa
ocorre de maneira bem diversa. Muitos são os Pedros que para cá vieram, muitos
disseram sim aos desmandos. No momento que aqui chegaram Bedotti e Ângela, esse
processo de migração estava a pleno vapor, tratava-se de “integrar para não
entregar”, como diziam os militares. Muitos dos colonos, como a personagem
Pedro da peça, ganharam mesmo foi malária e sofreram os descasos das
autoridades. Para o autor, em sua peça, trata-se da repetição de uma tradição,
que faz com que se repita as coisas sem questionar os desmandos. Como já cantou
Tom Zé, na canção Senhor cidadão, “com
quantos quilos de medo se faz uma tradição?”[3]
Na peça, em uma interrupção, ao
modo épico brechtiano, os atores se dirigem ao público e afirmam:
A
tradição foi bolada
Para
ninguém dizer nada
Não
criticar, não responder
Nem
contestar nem piscar.
Ela
foi feita pra isso,
Pra
dar força aos senhores
Poderosos,
detentores do poder (BEDOTTI, s.d., p, 7).
Assim foi
o primeiro ato, que mostrou Pedro e sua família no processo migratório. Um
Pedro que não questiona, que apenas diz sim. No segundo ato a história vai se
repetindo, porém se desdobra em um não, Pedro enfrenta as autoridades, rompendo
com a tradição. A Chinoca, personagem da esposa, afirma:
A
gente se junta aos outros,
E
diz não a esses doutores,
Que
é assim que se faz
Contra
esses infratores
Da
liberdade do homem
Que
trabalha pra viver (BEDOTTI, s.d., p. 14).
E vão às pessoas, juntando-as, somando-se os colonos,
criando um grande coro. Junto, em coletivo, Pedro agora pode afirmar: “Senhor
autoridade/ a resposta aqui é NÃO! / a toda esta situação” (BEDOTTI, s.d., p.
15).
O texto encerra pedindo ao público que reflitam sobre o sim e sobre o não na sociedade, até como forma de enfrentar o medo dos poderosos. A temática, como se vê, continua atual. Uma peça que tomou a estrutura de um autor alemão, escrita por um Argentino, para refletir a realidade histórica rondoniense. Ao final da peça, como artista também come, eles passam o chapéu, o que demonstra outra faceta daquele momento: a relação com o público de uma cena em construção.
Ângela Cavalcante em Alejandro Bedotti na Bolívia Década de 1970 - Arq. Talia Cavalcante |
Em 1986,
Bedotti publica um texto no jornal O
Imparcial, intitulado “Hoje tem espetáculo?”. O mote, tomado de empréstimo
do circo, serve, na verdade para fazer um apelo aos intelectuais da cidade para
se somarem à luta dos artistas de teatro na formação de público. Além de citar
alguns espetáculos criados naquele ano e outros já quase prontos para estrear, uma
clara revelação de que havia seriedade na cena, afirmava Alejandro Bedotti:
Estes
espetáculos criados e montados por artistas locais são o reflexo da seriedade
com que o Teatro está sendo encarado de um tempo para cá. Os grupos têm a preocupação
de criar e recriar (independente de leis) a realidade do homem Humano, o
essencial, o profundo, o verdadeiramente artístico. Sabe-se que para uma obra
ser completa, deve percorrer três
momentos indispensáveis: o momento da autoria, o da montagem e [a] própria
apresentação, ou seja, o da participação do público. Curiosamente, esta
trilogia não funciona em nossa cidade. Há o autor, há o ator, mas cadê o
público? (1986)
De lá
para cá, muito tempo se passou, exatamente 34 anos, muita água já rolou por
debaixo dessa ponte, ainda há dificuldades na cena teatral local, mas, no
geral, não falta público. Não sabemos e não podemos afirmar que seja por causa
de intelectuais, mas com certeza é fruto da luta de Alejandro Bedotti e de
Ângela Cavalcante. O texto aqui discutido, torna patente essa busca de diálogo
com o público e com a realidade local.
PS
Finalizei esse texto na noite de 18 de agosto
de 2020, enviei para Ângela Cavalcante às 21:24 por WhatsApp, pedindo que
conferisse e lesse para o Alejandro Bedotti. Ela me informou que ele havia
falecido às 20:15, portanto, não poderia mais ler o texto para ele. A cena teatral
rondoniense perde o dramaturgo, o mímico, o diretor; a sociedade, o psicólogo; familiares
e amigos, perdem pai, amigo, parceiro. Vá em paz!
Bibliografia
BEDOTTI, Alejandro. Hoje tem espetáculo? In: O Imparcial. Porto Velho, 23 de
dezembro de 1986, s.p.
_____. Pedros
e Pedros na conquista do Eldorado. Texto datilografado. s.d.
BUARQUE, Chico. Rebichada. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/86038/#album:os-saltimbancos-trapalhoes-1981 Acesso em: 18/08/2020.
ZÉ, Tom. Senhor
cidadão. Disponível em: https://www.letras.mus.br/tom-ze/164912/
Acesso em: 18/08/2020.
[1] Professor no Departamento de Artes
da Universidade Federal de Rondônia; doutorando em Artes pelos Instituto de
Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP); mestre em Artes pela mesma
instituição; autor do livro Teatro de Rua
– identidade, território, pela Giostri Editora; ator e diretor teatral.
[2] BUARQUE, Chico. Rebichada. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/86038/#album:os-saltimbancos-trapalhoes-1981 Acesso em: 18/08/2020.
[3] ZÉ, Tom. Senhor cidadão. Disponível em: https://www.letras.mus.br/tom-ze/164912/ Acesso em: 18/08/2020.
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