Pesquisar este blog

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Um argentino na Amazônia

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

 

Alejandro Ulises Bedotti nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1954. Estudou na Escuela de Teatro em La Plata. Veio ao Brasil na década de 1970, passando pelo Rio de Janeiro, conheceu Ângela Cavalcante, parceira de arte e, por muitos anos, de vida. Mesmo separados, a parceria permaneceu. Ambos chegaram em 1979, quando ainda era Território, passando antes por Rio Branco/AC para ministrar uma oficina de teatro. Eram anos de chumbo, mas a ditadura já se esboroava e se encaminhava pro seu final.

Alejandro Bedotti - Arq. Talia Cavalcante

Em 1980, Bedotti foi trabalhar no Sesc/RO, mas, por desacordos de quem comandava aquela instituição naquele período, foi demitido ainda no mesmo ano. Então, seguiu em viagem por outros estados da Região Norte e depois por países da América Central com o Grupo del Silencio. Retornando em 1981, quando da mudança de status de Rondônia, de Território para Unidade Federativa – mais uma estrela na bandeira brasileira.

Bedotti é mímico, diretor e dramaturgo e juntamente com a atriz Ângela Cavalcante criou em Porto Velho os grupos Cipó e Quebracabeça. Teço aqui um pequeno comentário sobre sua faceta de dramaturgo, destacando um de seus textos, Pedros e Pedros na conquista do Eldorado. A dramaturgia toma como estrutura um outro texto, Aquele que diz sim e aquele que diz não de Bertolt Brecht (1898-1956), que por sua vez se baseou em uma lenda chinesa. Como cantou Chico Buarque em Rebichada:

Essa história é mais velha que a história

Dos tempos de glória do velho barão

Quem não sabe de cor essa história

Refresque a memória e preste atenção

Não sou eu quem repete essa história

É a história que adora uma repetição

Uma repetição[2]

 

Assim, as estruturas vão se repetindo, mas se transformando. Na história de Bedotti a trupe de artistas abre o espetáculo contando de onde tiraram a ideia que vão apresentar, falam do autor alemão e afirmam epicamente: “Nas coisas da dialética / o negócio é dialogar”. O texto se vale da poesia popular, é todo ele rimado. Desde o início a conquista do Eldorado e para quem ele se destina está anunciado, como bem “informa” ou vende a personagem Radialista:

Atenção senhores ouvintes

Do Norte  do país nos chega uma notícia sensacional

Se quiser enricar é só ir para Eldorado

Que não vai se dar mal

Troque seu chimarrão por uma mandioca

E sua chinoca por uma cabocla! (BEDOTTI, s.d., p. 1-2)

 

O material datilografado a que tive acesso apresenta, por meio de manuscritos, diversas indicações da montagem, como o uso de cartazes, momentos que entra a música, nome de atores e atrizes (Ângela Cavalcante e o poeta Mado, por exemplo), trechos que foram cortados na encenação e com quantas pessoas é possível realizar a montagem: três atrizes e três atores.

A história, como já está claro, é sobre as terras prometidas aos colonos, uma promessa de riqueza certeira, mas a coisa ocorre de maneira bem diversa. Muitos são os Pedros que para cá vieram, muitos disseram sim aos desmandos. No momento que aqui chegaram Bedotti e Ângela, esse processo de migração estava a pleno vapor, tratava-se de “integrar para não entregar”, como diziam os militares. Muitos dos colonos, como a personagem Pedro da peça, ganharam mesmo foi malária e sofreram os descasos das autoridades. Para o autor, em sua peça, trata-se da repetição de uma tradição, que faz com que se repita as coisas sem questionar os desmandos. Como já cantou Tom Zé, na canção Senhor cidadão, “com quantos quilos de medo se faz uma tradição?”[3] Na peça, em uma interrupção, ao modo épico brechtiano, os atores se dirigem ao público e afirmam:

A tradição foi bolada

Para ninguém dizer nada

Não criticar, não responder

Nem contestar nem piscar.

Ela foi feita pra isso,

Pra dar força aos senhores

Poderosos, detentores do poder (BEDOTTI, s.d., p, 7).

 

Assim foi o primeiro ato, que mostrou Pedro e sua família no processo migratório. Um Pedro que não questiona, que apenas diz sim. No segundo ato a história vai se repetindo, porém se desdobra em um não, Pedro enfrenta as autoridades, rompendo com a tradição. A Chinoca, personagem da esposa, afirma:

A gente se junta aos outros,

E diz não a esses doutores,

Que é assim que se faz

Contra esses infratores

Da liberdade do homem

Que trabalha pra viver (BEDOTTI, s.d., p. 14).

 

E vão às pessoas, juntando-as, somando-se os colonos, criando um grande coro. Junto, em coletivo, Pedro agora pode afirmar: “Senhor autoridade/ a resposta aqui é NÃO! / a toda esta situação” (BEDOTTI, s.d., p. 15).

O texto encerra pedindo ao público que reflitam sobre o sim e sobre o não na sociedade, até como forma de enfrentar o medo dos poderosos. A temática, como se vê, continua atual. Uma peça que tomou a estrutura de um autor alemão, escrita por um Argentino, para refletir a realidade histórica rondoniense. Ao final da peça, como artista também come, eles passam o chapéu, o que demonstra outra faceta daquele momento: a relação com o público de uma cena em construção.

Ângela Cavalcante em Alejandro Bedotti na Bolívia
Década  de 1970 - Arq. Talia Cavalcante

Em 1986, Bedotti publica um texto no jornal O Imparcial, intitulado “Hoje tem espetáculo?”. O mote, tomado de empréstimo do circo, serve, na verdade para fazer um apelo aos intelectuais da cidade para se somarem à luta dos artistas de teatro na formação de público. Além de citar alguns espetáculos criados naquele ano e outros já quase prontos para estrear, uma clara revelação de que havia seriedade na cena, afirmava Alejandro Bedotti:

Estes espetáculos criados e montados por artistas locais são o reflexo da seriedade com que o Teatro está sendo encarado de um tempo para cá. Os grupos têm a preocupação de criar e recriar (independente de leis) a realidade do homem Humano, o essencial, o profundo, o verdadeiramente artístico. Sabe-se que para uma obra ser completa, deve percorrer  três momentos indispensáveis: o momento da autoria, o da montagem e [a] própria apresentação, ou seja, o da participação do público. Curiosamente, esta trilogia não funciona em nossa cidade. Há o autor, há o ator, mas cadê o público? (1986)

 

De lá para cá, muito tempo se passou, exatamente 34 anos, muita água já rolou por debaixo dessa ponte, ainda há dificuldades na cena teatral local, mas, no geral, não falta público. Não sabemos e não podemos afirmar que seja por causa de intelectuais, mas com certeza é fruto da luta de Alejandro Bedotti e de Ângela Cavalcante. O texto aqui discutido, torna patente essa busca de diálogo com o público e com a realidade local.

 

PS

Finalizei esse texto na noite de 18 de agosto de 2020, enviei para Ângela Cavalcante às 21:24 por WhatsApp, pedindo que conferisse e lesse para o Alejandro Bedotti. Ela me informou que ele havia falecido às 20:15, portanto, não poderia mais ler o texto para ele. A cena teatral rondoniense perde o dramaturgo, o mímico, o diretor; a sociedade, o psicólogo; familiares e amigos, perdem pai, amigo, parceiro. Vá em paz!

 

 

Bibliografia

BEDOTTI, Alejandro. Hoje tem espetáculo? In: O Imparcial. Porto Velho, 23 de dezembro de 1986, s.p.

_____. Pedros e Pedros na conquista do Eldorado. Texto datilografado. s.d.

BUARQUE, Chico. Rebichada. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/86038/#album:os-saltimbancos-trapalhoes-1981 Acesso em: 18/08/2020.

ZÉ, Tom. Senhor cidadão. Disponível em: https://www.letras.mus.br/tom-ze/164912/ Acesso em: 18/08/2020.



[1] Professor no Departamento de Artes da Universidade Federal de Rondônia; doutorando em Artes pelos Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP); mestre em Artes pela mesma instituição; autor do livro Teatro de Rua – identidade, território, pela Giostri Editora; ator e diretor teatral.

[2] BUARQUE, Chico. Rebichada. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/86038/#album:os-saltimbancos-trapalhoes-1981 Acesso em: 18/08/2020.

[3] ZÉ, Tom. Senhor cidadão. Disponível em: https://www.letras.mus.br/tom-ze/164912/ Acesso em: 18/08/2020.

Nenhum comentário:

Postar um comentário