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quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Sobre pássaros e prisões simbólicas



Adailtom Alves Teixeira[1]

Fabiano Barros, dramaturgo, diretor e gestor cultural com passagem pelo SESC e SEJUCEL, tem dado sua contribuição para a cena portovelhense desde que chegou de Pernambuco, ainda bem jovem. Criou em 2001 a Cia de Artes Fiasco e com ela vem pesquisando o que chama de “humanização dos mitos e lendas amazônicos”.

No último sábado, dia 16 de novembro de 2019, assisti seu último trabalho (autoria e direção), Onde morrem os pássaros?, interpretado por Artur Neto e Laura Martins. A trilha sonora foi composta e é executado ao vivo por Rinaldo Santos. Antes do espetáculo o público pode contemplar ainda uma exposição do artista Flávio Dutka.

A obra Onde morrem os pássaros? parece ser uma mudança na pesquisa que o autor vinha realizando, do ponto de vista temático e formal - ainda que continue com a ausência de palavra -, já que flerta com a estética surrealista, que tem como características a reação ao racional, forte influência da psicanálise, criação de uma realidade paralela e valorização do inconsciente.
Foto divulgação.

O mundo surreal e inconsciente criado por Fabiano Barros parece apontar pra uma discussão do que pode vir a ser o mal do século, a depressão e outras doenças psíquicas. Como afirma o filósofo Byng-Chul Han em seu livro Sociedade do cansaço (2017), “Cada época possui suas enfermidades  fundamentais” e o século XXI será o século das doenças neuronais: depressão, Síndrome de Burnout, transtornos de personalidades, entre outras. O espetáculo em tela dialoga com esse universo.

Em relação as questões do universo psíquico, creio que as duas críticas escritas até agora sobre o trabalho dão conta e há certo acordo, por isso remeto o leitor às mesmas. Estou me referindo ao que escreveu Luciano Oliveira (aqui) e Édier William (aqui). No que tange à montagem, sim também há certo acordo: é bem cuidada e limpa; partituras corporais claras e repetitivas, para tornarem explícito a monotonia das personagens - logo, os atores estão bem em suas execuções; boa trilha sonora; luz muito simples, porém funcional.  No entanto, parece-me, que um aspecto importante ficou de fora das apreensões críticas e é sobre isso que gostaria de dialogar.

Se o espetáculo no geral aponta para o surreal, sobretudo a personagem que está presa por uma repetição cotidiana de gestos e ações, levando-o a uma condição depressiva e/ou melancólica nessa gaiola-mundo de seu interior, a personagem feminina, a mulher, nos parece, que pode ser olhada por um viés realista e, por isso mesmo, muito mais cruel. É preciso lembrar que ela é colocada posteriormente em um mundo já dado, o mundo do depressivo, portanto, ela tem consciência daquela realidade. No entanto, sua condição é de total subalternidade ao sujeito-homem: é posta para servir. Desse ponto de vista nos parece equivocado, já que não se trata de uma relação construída anteriormente entre eles, mas de algo dado. Assim, a mulher fica inferiorizada em relação ao homem, não só por ter que realizar todas as tarefas domésticas, sem jamais questionar, mas por ser levada a esse mundo sem sabermos se é por querer, se é uma profissional, parente etc. Nada é explicado, assim o que salta aos olhos é apenas a subserviência da figura feminina. Nos parece que esse é o ponto crítico da obra.

Caberia perguntar: se fosse a mulher a depressiva e o homem viesse para lhe auxiliar daria a mesma leitura? Talvez não. E se fosse duas pessoas do mesmo gênero? É provável que também não. Se estamos tratando de questões importantes do século XXI, como as doenças psíquicas, talvez outras questões prementes de nosso tempo, como a de gênero, não devam ser ignoradas. Afinal, como afirma Ângela Davis em Mulheres, cultura e política (2017) (em um texto que está abordando justamente a questão de saúde), “A política não se situa no polo oposto ao de nossa vida. Desejemos ou não, ela permeia nossa existência, insinuando-se nos espaços mais íntimos”.

A afirmação da autora estadunidense nos leva a refletir sobre outro ponto: até aqui o debate público tem sido feito apenas por homens, o autor, por meio de sua obra, e os três críticos e suas apreensões. Talvez novas contradições apareçam ou pontos de vistas sejam referendados à medida que tivermos as mulheres também debatendo.



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista; integrante do Teatro Ruante; coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão em Crítica Teatral; e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

O voo de brilhantes pássaros artistas



Édier William[1]

Palavras, por meio delas acreditam alguns que o universo foi construído e é por meio delas que o mundo gira. Palavra no livro, palavra no copo, no rádio, no céu. Palavra escrita, palavra falada, cantada. São as palavras que contam a vida e inventam histórias.
Saber usar as palavras para criar histórias, no entanto, pode ser considerado um dom que poucos têm. Uma história mal contada é como comer um banquete sem tempero, ouvir uma música sem poesia... Agora imagine saber contar uma história sem usar um único fonema. É exatamente assim que “Onde morrem os pássaros” é encenada, sem palavras. Assisti esse espetáculo em sua estreia no Teatro 1 do Sesc Esplanada.

Saber contar uma história por meio de imagens e movimentos no teatro, talvez seja uma das coisas mais difíceis. Poucas vezes assisti algum espetáculo com essa proposta que tenha conseguido metade do que Fabiano Barros, dramaturgo e diretor do espetáculo, conseguiu.
O espetáculo reflete sobre um dos maiores males desse século, a depressão. Um homem, interpretado pelo ator Artur Neto, mergulhado em solidão vive em uma rotina monótona e surrealista, que aos poucos vai submergindo o espectador em uma profunda melancolia poética. Em dado momento uma mulher, Laura Martins, surge para trazer um pouco de vida para o homem, mas é rejeitada por diversas vezes, ela tenta ajudá-lo a sair do fundo do posso do looping em que entrara, sem sucesso.
Trazendo para nossa realidade é como estar presenciando no palco uma pessoa que acorda e não tem forças para se levantar da cama, está aprisionada ao celular, à TV, ao quarto. Uma pessoa que sai do quarto para fazer o xixi que não tem, pois não bebeu água, para comer o que não tem na geladeira, pois não saiu para comprar nada, que volta ao quarto e coloca uma música que não ouve, pois está perdido na timeline de alguém que não conhece, desejando ter algo que nunca terá sem se levantar para trabalhar.
Há genialidade na forma que Fabiano Barros conta a história juntamente com os não menos geniais atuadores. É necessário ressaltar que a dramaturgia sonora que ficou a cargo de Rinaldo Santos é espetacular, consegue causar inúmeras sensações na alma e na carne dos espectadores. A única ressalva sobre a música é a sua execução ao vivo, à mostra, ao lado do cenário, isso desvia um pouco da concentração de alguns espectadores.
Foto divulgação.
A iluminação e cenografia são clássicas, uma escolha do diretor que funciona, mas poderia trazer mais impacto se fossem contemporâneas, já que o espetáculo aborda questões extremamente atuais.
Um espetáculo, durante sua jornada de apresentações, passa por um processo de amadurecimento, esse espetáculo, que já nasceu maduro, poderá se tornar ainda mais impactante, conforme o ritmo for melhor definido e o espetáculo, que teve mais de uma hora e vinte minutos, se torne preciso quanto ao que precisa ser dito por meio dos movimentos em cena.
Onde morrem os pássaros? Assista e descubra, ou quem sabe fique com ainda mais dúvidas, mas tenha certeza de que assistirá uma obra de arte incrível!


[1] Édier William Medeiros da Silva, graduado em Letras, FIAR (2012), Especialização em Metodologia do Ensino Superior, FAEL (2016), Técnico em Produção Audiovisual, CEP (2015). É escritor, dramaturgo, ator, diretor e produtor cultural.