Adailtom Alves Teixeira[1]
O autor galês Raymond Williams, em seu texto A cultura é algo comum, apresenta o termo
cultura com dois sentidos fundamentais: modo de vida e a maneira como se
aprende e se expressa um povo. Assim, a cultura é algo comum a todas as sociedades
humanas, que se expressam por meio das instituições, das artes e do
conhecimento, revelando, dessa forma, todo o poder de expressão de um povo, uma
comunidade, um grupo social.
E é justamente ao compreendermos esse sentido da cultura que
o Projeto Quilombo, realizado pelo O Imaginário, exprime toda sua força.
Seja como recuperação da memória de uma comunidade, seja por travar diálogo com
realidades distintas, isto é, permitindo àqueles que não são quilombolas
poderem se aproximar um pouco dessa história, a partir do levantamento de
material e da criação de uma exposição e uma videodança. Além disso, trouxe
algumas pessoas do universo pesquisado, proporcionando, para quem compareceu ao
Tapiri (sede do grupo), momentos de trocas e diálogo.
O Imaginário foi criado em 2005, de lá pra cá vem
contribuindo com a cena portovelhense e amazônica por meio de seus espetáculos,
bem como com a realização de grandes projetos, como o Festival Amazônia Encena
na Rua – uma referência nacional para grupos e artistas que praticam o teatro
no espaço aberto. O Projeto Quilombo
é mais um mergulho na cultura rondoniense, nesse caso, na cultura de matriz
afro, universo, ainda pouco conhecido e marginalizado.
Maurice Halbwachs, em seu livro A memória coletiva, afirma que, quando um grupo social se insere em
determinado espaço, ele “(...) o molda à sua imagem, mas ao mesmo tempo se
dobra e se adapta a coisas materiais que a ela resistem” (2008, p. 159). O
projeto tem muitos elementos importantes, o primeiro é nos revelar parte dessa
cultura ainda pouco conhecida. O que fica claro, como deixa transparecer
Halbwachs, é que o quilombo rondoniense é distinto daqueles que conhecemos no
Sudeste, por exemplo. É possível perceber traços da cultura ameríndia na
expressão dos quilombolas. Dessa forma, seja pelas características da região,
seja por causa do contato com os povos do lugar, os primeiros negros moldaram e
foram moldados pelo lugar. Logo, trazer à tona parte dessa história já é, em
si, meritório e significativo para todos que se interessam pela cultura em
nosso Estado.
Outro aspecto diz respeito à autoestima que um projeto dessa
natureza pode provocar nas pessoas pesquisadas, já que se trata de uma cultura
historicamente negligenciada e que vem lutando para se afirmar. Apesar de
algumas conquistas, sabemos, que esse grupo social ainda tem muito por conquistar,
como fica patente pelos relatos no documentário – mais um dos produtos gerados
pelo projeto.
Ainda em relação a autoestima, aproveito para relatar a
beleza estampada nos olhos de uma participante do projeto, na condição de
detentora do conhecimento de sua história e que apresentou seu relato para o
projeto. Em nossa conversa, tons de saudade e a alegria de poder viver aquele
momento, ao se ver representada pelo projeto no espaço do Tapiri.
Edna Almeida, educadora de trânsito em Guajará-Mirim e que,
como disse, fez questão de estar presente no lançamento da exposição, da
videodança e do documentário, frutos do Projeto
Quilombo. Pudemos fruir a exposição juntos, eu, ela e Chicão Santos. Depois
o último, na condição de anfitrião e de produtor, se retirou devido a seus
afazeres e ficamos vendo as fotografias expostas na parede e no ar, penduradas
por uma estrutura, decoradas por chitas. Difícil descrever e traduzir a
alegria, a emoção da Edna em se ver ali representada, embora não tivesse fotos
suas, mas dos seus. Ela repetiu algumas vezes: “essa é a minha história.”
Alguns momentos seus olhos marejaram ao ver o rio e as pessoas nas imensas
fotografias à nossa frente; citava os nomes de cada homem e de cada mulher daquelas
imagens. Falou também da dança típica, o rasqueado, dos momentos religiosos,
todos registrados em fotos à nossa frente.
As fotos de autoria de Andréa Melo, Chicão Santos e Raíssa
Dourado são belíssimas, não só pela plasticidade, pelas cores, mas, sobretudo,
porque captaram movimentos de trabalho, de lazer e religiosidade, isolando-os,
ao mesmo tempo em que revelam a geografia espacial e humana. Se, grosso modo,
dança é organização do movimento no espaço, cada fotografia, captou movimentos
da dança maior que é a cultura dos quilombos rondonienses. A videodança, segue
na mesma linha, a diferença é que os põe em movimento. Assim, os dois vídeos
(GuariterêBenguela e Quilombolas: veias negras do Guaporé), a exposição e o encontro ao som do rasqueado se
completam, ao transpor para a cidade de Porto Velho, ainda que de forma
momentânea, a cultura quilombola do Vale do Guaporé.
Por
fim, cabe informar que o Projeto
Quilombo, Residência Artística Flutuante pelas águas do Vale do Guaporé, no
Estado de Rondônia – Amazônia, foi contemplado pelo Prêmio Funarte Klauss
Vianna de dança de 2015 e vem sendo realizado desde agosto de 2016, o
que demonstra a importância das políticas públicas de cultura para viabilizar
projetos dessa importância, sem apelo comercial, mas fundamental para enriquecer
o nosso imaginário.
Bibliografia
HALBWCHS, Maurice. A memória coletiva. Trad.: Beatriz
Sidou. São Paulo: Centauro, 2008.
WILLIAMS, Raymond. Recursos
da esperança: cultura, democracia, socialismo. Trad.: Nair Fonseca, João
Alexandre Peschaski. São Paulo: EDUNESP, 2015.
[1]
Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia;
Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista(UNESP); Membro do Grupo de
Pesquisa Paky`Op; Membro do GT Artes Cênicas na Rua da ABRACE; Articulador da
Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR); ator e diretor do grupo Teatro Ruante.
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