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terça-feira, 28 de março de 2017

A força da memória


Adailtom Alves Teixeira[1]

O autor galês Raymond Williams, em seu texto A cultura é algo comum, apresenta o termo cultura com dois sentidos fundamentais: modo de vida e a maneira como se aprende e se expressa um povo. Assim, a cultura é algo comum a todas as sociedades humanas, que se expressam por meio das instituições, das artes e do conhecimento, revelando, dessa forma, todo o poder de expressão de um povo, uma comunidade, um grupo social.


E é justamente ao compreendermos esse sentido da cultura que o Projeto Quilombo, realizado pelo O Imaginário, exprime toda sua força. Seja como recuperação da memória de uma comunidade, seja por travar diálogo com realidades distintas, isto é, permitindo àqueles que não são quilombolas poderem se aproximar um pouco dessa história, a partir do levantamento de material e da criação de uma exposição e uma videodança. Além disso, trouxe algumas pessoas do universo pesquisado, proporcionando, para quem compareceu ao Tapiri (sede do grupo), momentos de trocas e diálogo.

O Imaginário foi criado em 2005, de lá pra cá vem contribuindo com a cena portovelhense e amazônica por meio de seus espetáculos, bem como com a realização de grandes projetos, como o Festival Amazônia Encena na Rua – uma referência nacional para grupos e artistas que praticam o teatro no espaço aberto. O Projeto Quilombo é mais um mergulho na cultura rondoniense, nesse caso, na cultura de matriz afro, universo, ainda pouco conhecido e marginalizado.

Maurice Halbwachs, em seu livro A memória coletiva, afirma que, quando um grupo social se insere em determinado espaço, ele “(...) o molda à sua imagem, mas ao mesmo tempo se dobra e se adapta a coisas materiais que a ela resistem” (2008, p. 159). O projeto tem muitos elementos importantes, o primeiro é nos revelar parte dessa cultura ainda pouco conhecida. O que fica claro, como deixa transparecer Halbwachs, é que o quilombo rondoniense é distinto daqueles que conhecemos no Sudeste, por exemplo. É possível perceber traços da cultura ameríndia na expressão dos quilombolas. Dessa forma, seja pelas características da região, seja por causa do contato com os povos do lugar, os primeiros negros moldaram e foram moldados pelo lugar. Logo, trazer à tona parte dessa história já é, em si, meritório e significativo para todos que se interessam pela cultura em nosso Estado.

Outro aspecto diz respeito à autoestima que um projeto dessa natureza pode provocar nas pessoas pesquisadas, já que se trata de uma cultura historicamente negligenciada e que vem lutando para se afirmar. Apesar de algumas conquistas, sabemos, que esse grupo social ainda tem muito por conquistar, como fica patente pelos relatos no documentário – mais um dos produtos gerados pelo projeto.

Ainda em relação a autoestima, aproveito para relatar a beleza estampada nos olhos de uma participante do projeto, na condição de detentora do conhecimento de sua história e que apresentou seu relato para o projeto. Em nossa conversa, tons de saudade e a alegria de poder viver aquele momento, ao se ver representada pelo projeto no espaço do Tapiri.

Edna Almeida, educadora de trânsito em Guajará-Mirim e que, como disse, fez questão de estar presente no lançamento da exposição, da videodança e do documentário, frutos do Projeto Quilombo. Pudemos fruir a exposição juntos, eu, ela e Chicão Santos. Depois o último, na condição de anfitrião e de produtor, se retirou devido a seus afazeres e ficamos vendo as fotografias expostas na parede e no ar, penduradas por uma estrutura, decoradas por chitas. Difícil descrever e traduzir a alegria, a emoção da Edna em se ver ali representada, embora não tivesse fotos suas, mas dos seus. Ela repetiu algumas vezes: “essa é a minha história.” Alguns momentos seus olhos marejaram ao ver o rio e as pessoas nas imensas fotografias à nossa frente; citava os nomes de cada homem e de cada mulher daquelas imagens. Falou também da dança típica, o rasqueado, dos momentos religiosos, todos registrados em fotos à nossa frente.

As fotos de autoria de Andréa Melo, Chicão Santos e Raíssa Dourado são belíssimas, não só pela plasticidade, pelas cores, mas, sobretudo, porque captaram movimentos de trabalho, de lazer e religiosidade, isolando-os, ao mesmo tempo em que revelam a geografia espacial e humana. Se, grosso modo, dança é organização do movimento no espaço, cada fotografia, captou movimentos da dança maior que é a cultura dos quilombos rondonienses. A videodança, segue na mesma linha, a diferença é que os põe em movimento. Assim, os dois vídeos (GuariterêBenguela e Quilombolas: veias negras do Guaporé), a exposição e o encontro ao som do rasqueado se completam, ao transpor para a cidade de Porto Velho, ainda que de forma momentânea, a cultura quilombola do Vale do Guaporé.

Por fim, cabe informar que o Projeto Quilombo, Residência Artística Flutuante pelas águas do Vale do Guaporé, no Estado de Rondônia – Amazônia, foi contemplado pelo Prêmio Funarte Klauss Vianna de dança de 2015 e vem sendo realizado desde agosto de 2016, o que demonstra a importância das políticas públicas de cultura para viabilizar projetos dessa importância, sem apelo comercial, mas fundamental para enriquecer o nosso imaginário.

Bibliografia
HALBWCHS, Maurice. A memória coletiva. Trad.: Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2008.
WILLIAMS, Raymond. Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. Trad.: Nair Fonseca, João Alexandre Peschaski. São Paulo: EDUNESP, 2015.




[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista(UNESP); Membro do Grupo de Pesquisa Paky`Op; Membro do GT Artes Cênicas na Rua da ABRACE; Articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR); ator e diretor do grupo Teatro Ruante.

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