Pesquisar este blog

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Teatro em Porto Velho em 1917: complemento de uma pesquisa

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

 

Pesquisar, vem do latim perquiro, que significa procurar, buscar com cuidado. Todos nós lidamos com algum tipo de pesquisa em nosso cotidiano. No entanto, a pesquisa científica significa “a investigação feita com o objetivo expresso de obter conhecimento específico e estruturado sobre um assunto preciso” (Bagno, 2002, p. 18). Nosso assunto de interesse é o teatro em Porto Velho, que toma como fonte o jornal Alto Madeira. Nesse sentido, “o jornal pode auxiliar-nos na compreensão de grupos sociais e contextos passados” (Silva, 2008, p. 27). Ainda que nenhuma fonte única dê conta da complexidade dos contextos e das relações humanas, mas apresenta pistas significativas, que precisam serem problematizadas. Porém, nosso intuito aqui é mais realizar um relato de complemento a uma pesquisa anterior.

Em 2022 organizei com Jussara Trindade Moreira um livro, publicado pela Edufro, editora da Universidade Federal de Rondônia. No livro consta um capítulo escrito por mim, fruto de uma pesquisa na qual tomei como fonte primária o jornal Alto Madeira e é intitulado “O teatro em Porto Velho em 1917: pistas e sinais a partir do jornal Alto Madeira” (o livro pode ser baixado aqui: https://edufro.unir.br/uploads/08899242/Edital%202019/PAKY%20OP.pdf).

Por que se fez necessário um complemento a aquele texto? Como poderá ser constatado com a leitura, ali informo que tive acesso apenas as edições do número 15 em diante no período tratado. Ocorre que consegui acessar mais sete edições anteriores, números 5, 7, 9, 10, 11, 12 e 13, que recua até maio daquele ano, 1917 (o jornal teve início em abril). Além disso, tive acesso a outras quatro edições do segundo semestre do período em tela: 25, 62, 63 e 64.

           

Alto Madeira, edição 11 de
17 de junho de 1917, p. 2.

No que tange ao espaço específico em que ocorreram as apresentações naquele ano de 1917, no qual é possível aludir como um início do teatro na cidade, ou pelo menos, início dos primeiros registros acerca dessa linguagem artística, o destaque continua sendo a Associação Instrutiva, Recreativa e Beneficente de Porto Velho (AIRB). Tal Associação compôs um corpo cênico com seus associados. Porém, por meio das novas edições do Alto Madeira, especialmente a de número 11 de 17 de junho, tomamos conhecimento que The Porto Velho Boys Dramatic Association, composto, conforme a nota, por funcionários barbadianos da Estrada de Ferro Madeira Mamoré (EFMM), utilizou o salão da AIRB para realizar uma festa em prol da Cruz Vermelha Inglesa e na qual teve apresentação teatral e duetos musicais. Não foi possível apurar qual peça, nem se foi apresentado em inglês ou português. De todo modo, é possível inferir que este coletivo pode ser anterior a AIRB, posto que são funcionários da EFMM, finalizada em 1912. Provavelmente o coletivo não dispusesse de espaço próprio, daí a necessidade de uso daquela Associação. Teriam sido os barbadianos os primeiros a introduzirem o teatro na cidade de Porto Velho?

Na edição seguinte do Alto Madeira, de número 12, de 24 de junho de 1917, em pequena nota à página 3, consta um relato da sessão de cinema que ocorreu no dia 21 na AIRB e na qual anuncia a “festa mensal” que ocorrerá dia 30 daquele mês, quando será apresentada “uma hilariante comédia, monólogos e cançonetas, seguido de animado baile”. A festa do mês anterior, de maio, conforme nota na edição 09 de 03 de junho, pagina 2, não teve apresentação teatral, apenas danças e poesia, o que foi corrigido com a criação do corpo cênico da AIRB, é o que se pode constatar no capítulo do livro já mencionado e também na edição 14. Desse modo, ainda que tenha a AIRB tenha sido criado em 1916, só no ano seguinte criou seu corpo diletante de atores e atrizes.

A edição de 5 de julho de 1917, à página 3, com o título de Associação Instrutictiva Recreativa e Beneficente, consta uma espécie de relato crítico que merece ser reproduzido na íntegra, inclusive sem correção de sua grafia, para entendermos o processo que passou a ocorrer constantemente na AIRB naquele ano:

Conforme annunciaramos, realisou-se no dia 30 do mez pretérito [junho] a festa mensal que essa importante Sociedade realisa para deleite dos seus socios.

Dia a dia mais se verifica a aceitação que essa Sociedade vae tendo em nosso meio e o apreço em que é tida pela nossa população.

O gosto pela arte dramatica vae sendo despertado e estimulado de tal modo, que dentro de pouco tempo teremos nesta villa organisado um distincto grupo de amadores que nada a deixara desejar em confronto com as cidades mais cultas.

A representação das duas comedias “Dois nenés”, é bem um expoente desse asserto pois, os amadores que nellas tomaram parte, revelaram mais uma vez verdadeira vocação artística.

Não fallaremos de Soares Brega que já é um artista consagrado por platéas adiantadas e que em nosso meio é a alma desse centro artístico que se vae organisando a esforços seus com uma abnegação digna de registo.

Emtanto, deveremos citar a bôa interpretação dada a seus papeis, por Antonio Lopes, Joaquim Candéas, Oscar Theophilo e Por João Monte que fez sua estréa em adoraveis jogos de scena, perfeita dicção e muito chiste.

Num dos intervallos, Antonio Lopes que é um perfeito typo de artista, cantou com muita graça a hilariante cançoneta “Médico afamado” que provocou do auditorio constantes gargalhadas, sendo bisado ao terminar.

Antonio Candéas, cantou também com muito espirito cançoneta “Uma penhora” sendo muito applaudido.

As senhorinhas Maria de Lourdes Dantas e Maria da Paz, interpretaram bem os seus papeis na comedia “Dois nenés”, notando-se porém que ambos precisam de mais estudo, mais cuidado e mais attenção para dentro de breve praso se firmarem no palco.

Nada ficou a desejar dessa representação e os applausos do auditório foram mais uma vez a confirmação plena da victoria que vae obtendo o corpo scenico dessa utilíssima instituição.

Após a representação, seguiram-se animadas danças, notando-se a presença do nosso escól social, representado por mais de trinta senhoras e senhorinhas e por grande numero de cavalheiros.

A orchestra esteve sob a direcção do illustre pianista da Associação Sr. Julio Vigil e prestou-se admiravelmente.

Levando nossos appalusos à illustre directoria dessa importante Associação, apresentamos-lhe sinceras felicitações pelo exito obtido nessa festa (Alto Madeira, 2017, p. 3).

 

Alguns pontos da nota são fundamentais: primeiro conhecer os nomes de algumas pessoas desse corpo cênico diletante, porém, coordenado pelo Soares Braga, que, como afirma a nota tem experiência anterior; segundo, é um grupo misto de homens e mulheres, inclusive com idades distintas, desde jovens (senhorinhas) aos mais experientes, todos preocupados em desenvolver um bom trabalho teatral. O desenvolvimento desse trabalho cênico naquele ano eu aprofundo um pouco mais no capitulo já citado.

           

Alto Madeira, edição 25 de 12
de agosto de 1917, p. 1.

Essas são as observações acerca das edições anteriores ao número 15. No que tange ao período tratado no capítulo do citado livro, números posteriores, mas que só agora tive acesso, alguns elementos merecem destaque. Assim, na edição 25 de 12 de agosto à página 1, a Porto Velho Boys Dramatic volta à cena mais uma vez, no terceiro ano da declaração de guerra entre Inglaterra e Alemanha, realiza uma festa “em defesa dos direitos da Bélgica”, com as receitas revertidas à Cruz Vermelha e às viúvas e órfãos  belgas. Na ocasião foram encenadas comédias, monólogos, bem como canções cômicas foram tocadas. A festa, ainda de acordo com a nota, teve encerramento com o hino nacional e “Presidio o altruístico festival o sr. Vice consul de Ingraterra nesta villa, Mr. W. J. Knox-Little, acompanhado de todos os altos funcionários da Madeira Mamoré Ry. Co.” (ALTO MADEIRA, 1917, p. 1).

Ainda na mesma edição, à página 5, três pequenos avisos acerca da AIRB: o primeiro informa que no dia 20 ocorrerá um festival literário com os “intellectuaes aqui residentes”; o segundo avisa que o teatro da Associação foi cedido à “cançonetista Renata Yolanda”, que realizará no dia seguinte um concurso com os amadores locais; por fim, informa que no sábado seguinte ocorrerá sua festa mensal.

Três edições, já de dezembro, a que tivemos acesso, 62, 63 e 64, apresenta informações acerca de novo clube que a cidade ganhou, o Ideal Club (página 3, na edição 62 de 23 de dezembro), bem como mais uma festa na AIRB (página 1, edição 63 de 27 de dezembro), dessa vez a de natal, que se prolongou até as três da manhã. Na mesma edição, à página 5, sabemos que haverá, no dia seguinte, uma Serata Lítero-Musical na AIRB; ainda na mesma página, há uma nota acerca do Theatro Phenix, que prepara um espetáculo para o dia 29 daquele mês, para solenizar os últimos momentos do ano.

Quanto a última edição daquele ano, 64, de 30 de dezembro, em uma secção nominada Palcos & Telas, o Teatro Phenix anuncia, à página 3, a apresentação da comédia “As convicções do Papa” de Edmund Goudinet, com tradução de Gervásio Lobato – e que fora sucesso em Lisboa – e também “O fado” de Bento Mantua. Ficamos sabendo também que a nova diretoria da AIRB será empossada, com vigência para o ano de 1918. Mesmo no final do ano, tanto na AIRB quanto no Teatro Phenix havia muita movimentação artística.

Aqui encerramos nosso texto, que se propôs a complementar a pesquisa anterior. Pesquisas futuras precisam trazer à luz os mais de 100 anos de história do teatro na capital rondoniense.

 

Referências

ALTO MADEIRA, edições 5, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 25, 62, 63 e 64. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=060160&pagfis=37760. Acesso em: 25 abr. 2024.

BAGNO, Marcos. Pesquisa na escola: o que é, como se faz. 8ª ed. São Paulo: Loyola, 2002.

SILVA, Sônia Maria de Meneses. Nação de papel: o jornal como possibilidade de investigação histórica na problemática da construção nacional no século XIX. In: FREITAS, Antonio de Pádua Santiago de; BARBOSA, Francisco Carlos Jacinto; DAMASCENO, Francisco José Gomes (Orgs.). Pesquisa histórica: fontes e trajetórias. Fortaleza: EdUECE; Abeu, 2008.

TEIXEIRA, Adailtom Alves. O teatro em Porto Velho em 1917: pistas e sinais a partir do jornal Alto Madeira. In: TEIXEIRA, Adailtom Alves; MOREIRA, Jussara Trindade (Orgs.). Paky`op: experiências, travessias, práxis cênica e docência em teatro. Porto Velho, RO: Edufro, 2022. Disponível em:  https://edufro.unir.br/uploads/08899242/Edital%202019/PAKY%20OP.pdf. Acesso em: 25 abr. 2024.



[1] Doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da UNESP; graduado em história pela UNICSUL; professor adjunto da Universidade Federal de Rondônia; ator, diretor e dramaturgo; integrante do Teatro Ruante.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

A literatura dramática brasileira e seu contexto histórico

 

A literatura dramática brasileira e seu contexto histórico

Por meio de textos teatrais de diversos autores e períodos o curso visa discutir, além da temática intrínseca, o contexto de sua escrita e/ou montagem de espetáculo, bem como alguns dos momentos da história brasileira, como a colônia, o império e as diversas repúblicas. Objetiva-se formar no decorrer do processo um painel diverso de assuntos e poéticas.

O curso será ministrado por Adailtom Alves Teixeira, Professor Adjunto do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Doutor e mestre em Artes (área de concentração Artes Cênicas) pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Graduado em História pela Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul). Integrante do Teatro Ruante, articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR). Autor do livro Teatro de Rua – Identidade, Território (Giostri, 2020) e coorganizador de Paky`Op: experiências, travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).

Com duração de 40h, o curso terá início em 27/02/2024 e segue até dia 30/04/2024, com encontros sempre às terças-feiras à noite pelo Google Meet. As inscrições podem ser realizadas no formulário no seguinte link: https://forms.gle/hxRkBzDnwV4p7EPx6

SERVIÇO
O QUÊ: Curso de Extensão A Literatura Dramática Brasileira e Seu Contexto Histórico

QUANDO: de 27/02 a 30/04/2024 - 19h (toda terça-feira)

QUANTO: Gratuito!

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Arte: apontamentos iniciais para descortinar criações e armadilhas

 


Adailtom Alves Teixeira[1]

 

A arte é uma das possibilidades de conhecermos melhor a nós mesmos como humanidade, bem como a realidade a nossa volta. Por meio de uma obra, que nos desperta sentimentos, se pode relacionar, comparar tais sentimentos a outros e de outras pessoas. Porém, para um maior efeito, isso ocorre quando a arte está conectada com seu tempo histórico, com o mundo à sua volta ou quando capta aspectos fundantes de nossa humanidade. “O conhecimento jamais esgota a realidade, mas a ciência e a arte, mesmo não sendo oniscientes e onipresentes, têm desvendado aspectos importantes do ser” (Konder, 2005, p. 60).

Não é por acaso que a arte é fundamental na constituição de identidades, seja dos sujeitos, seja dos territórios. Ainda que para este último apenas a produção artística não baste, posto que a identidade de um lugar se compõe de diversos elementos culturais, dos quais a arte é apenas um dos componentes. Sujeitos e lugares, por sua vez, estão conectados, como afirma Ana Mae Barbosa: “Relembrando Fanon, eu diria que a Arte capacita um homem ou uma mulher a não ser um estranho em seu meio ambiente, nem estrangeiro em seu próprio país. Ela supera o estado de despersonalização, inserindo o indivíduo no lugar ao qual pertence, reforçando e ampliando seus lugares no mundo” (2002, p. 18).

Pode-se afirmar que, quando olhamos esse campo de conhecimento de modo amplo, nenhum grupo social vive sem arte, posto que o ser humano tem necessidade de beleza – ainda que o belo seja apenas uma das categorias estéticas das artes – e de expressão. À primeira vista tal afirmação pode escorregar para certo idealismo, porém tal expressão a que chamo de necessidade de beleza, é a possibilidade de dar contornos, formas sentidos às coisas em diálogo com seu tempo; toda obra é material. “O artista, embora pense com suas mãos, crie com seu corpo, surge em uma época, isto é, em uma história e em um mundo, cuja palavra, primeiro poética, mítica, sempre estabeleceu antes os contornos e os limites” (Haar, 2000, p. 94).

Por isso, responder o que é arte se torna algo difícil, já que não é unívoca. Melhor que dá uma resposta única é tentarmos continuar a burilar tal universo. Uma palavra, ao ser manipulada pelo poeta, pode assumir outros sentidos; uma pedra desbastada pode ganhar formas diversas, um objeto retirado de seu contexto original e posto em outro, pode ganhar um novo status, o de obra de arte.

As pessoas em sociedade, não só criam os objetos de arte, como também criam as condições para que esses objetos sejam vistos como tal. O nosso ancestral que pintava nas cavernas, é certo que não fazia arte naquele momento, tal produção tinha uma função mágico-religiosa, mas com o tempo passamos a vê as pinturas das cavernas como obras de artes: arte rupestre.

A arte se reinventa, visando expressar questões humanas, questionando a si, a sociedade e a seu tempo. O artista cria, o fruidor, o público, recria ao dar sua interpretação. Os especialistas elevam ao status de arte, aquilo que não foi pensado inicialmente como arte, como, por exemplo, uma pia batismal do século XVII. Nesse sentido, como distinguir obras de artes de outros objetos?

O papel da arte também não é o mesmo em todas as épocas e lugares, ela muda sempre; os gostos mudam e mudam as formas de nos relacionarmos com a arte. Mas quem determina que algo, que certos objetos são ou não uma obra de arte, ou aquilo que antes não era passe a ser visto como um objeto artístico?

Como afirma o filósofo Arthur Danto: “O que afinal de contas, faz a diferença entre uma caixa de Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brillo é uma certa teoria da arte. É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de recair na condição do objeto real que ela é [...]. É claro que, sem a teoria, é improvável que alguém veja isso como arte” (2015, p. 37). Ora, então sem o teórico não existe arte? Bem, para Danto, quando o artista retira um elemento da realidade, modifica-o ou lhe dá novos significados, necessita de certa teoria para que de algum modo tais objetos se plasmem como obras de arte. O que demonstra quão complexo é o mundo artístico. Desse modo, poderíamos pensar em Mestre Vitalino (1909-1963), para além de seu imenso talento, seus “brinquedos” vendidos na feira de Caruaru teriam se tornado uma arte desejada, caso não fosse o fato de ganhar novos espaços? Como a exposição em que participou em João Pessoa a convite do artista plástico Augusto Rodrigues em 1947? Depois, o artista expôs no Masp em 1949, de onde alçou voos internacionais, ao compor uma exposição brasileira na Suíça em 1955.

Tal complexidade é também abordada por Jorge Coli, sobretudo no que tange aos ditos espaços consagrados e que consagram; tais lugares teriam, em tese, a capacidade “Para decidir o que é ou não arte”. Dentro de tais elementos, ao juntar teoria e espaços de legitimação cultural, o autor afirma que nossa cultura possui instrumentos específicos para isso. “Um deles, essencial, é o discurso sobre o objeto artístico, em que reconhecemos competência e autoridade. Esse discurso é o que profere o crítico, o historiador da arte, o perito, o conservador do museu. São eles que conferem o estatuto de arte a um objeto. Nossa cultura também prevê locais específicos onde a arte pode manifestar-se, quer dizer, locais que também dão estatuto de arte a um objeto” (Coli, s.d., p. 13). Mas, pode-se perguntar: quem são as pessoas, gestores, instituições que representam tais espaços? Qual o contexto que determinada obra é valorada? Porque umas são valorizadas em detrimento de outras?

Rosangela Patriota (2008), ao revisitar seu histórico de pesquisas acerca do teatro, afirma que a “memória histórica”, isto é, a produção e reflexão de historiadores, cria certo ordenamento das experiências artísticas, daí a importância do diálogo crítico com a história do teatro. Como exemplo a autora afirma que “[...] noções como moderno, político, universal, clássico, engajado, entre outras” (2008, p. 36), vão estruturando valores e hierarquias de artistas e obras. Apesar de, para a autora se ter avançado nas pesquisas acerca do teatro Brasil a fora, além da impactante contribuição de suas produções, sobretudo na década de 1970 – foco da autora –, as reflexões “[...] foram profundamente impregnadas pelos temas e ideias das cenas paulista e carioca” (Patriota, 2008, p. 38). 

Assim, podemos concluir que, se por um lado, muitos dos objetos que apreciamos como obra de arte, sem as teorias, sem os críticos, sem os espaços consagrados ao mundo das artes, provavelmente jamais seriam vistos como arte. Por outro lado, é importante sabermos que quando estamos diante de uma obra ou artista dito “consagrado”, tanto um como o outro, são mais do que o objeto e a pessoa, acabam por englobar tudo o que foi produzido/escrito sobre a obra e sobre o artista. Por isso mesmo, não significa dizer que aquelas obras que estão fora desse rol necessariamente são destituídas de valores e importância; significa, tão somente, que algumas galgaram um lugar que outras não chegaram, graças a um aparato que depende de outras redes e “especialistas”.

Para finalizar com Danto: “Qualquer que seja o predicado artisticamente relevante em virtude do qual elas ganham seu acesso, o resto do mundo da arte se torna proporcionalmente rico ao ter o predicado oposto disponível e aplicável a seus membros” (2015, p. 41). Cabe ainda mencionar que, determinadas expressões artísticas, têm sido persistentemente desprestigiadas, ignoradas, postas de lado, que quando há reflexões sobre elas, são no sentido de desvalorizá-las, por isso, faz-se necessário aguçar o olhar, ouvidos, demais sentidos e a razão, analisando com cuidado tais hierarquias criadas; é preciso uma análise a contrapelo, como nos ensina Walter Benjamin (2012).

Tal reflexão, como já dito, não é unívoca e é apenas um passo inicial em um processo muito mais amplo, mas pode-se concluir que a “consagração” de uma obra artística, implica muitos/as sujeitos/as para além de seu/sua próprio/a criador/a. Inserido/a no seu tempo histórico, com o qual, consciente ou inconscientemente o/a artista lidará, ele/ela necessita também de toda uma rede que implica, além dos/as fruidores/as, outros/as sujeitos/as, como os formadores para recepção da obra, críticos/as que a debaterão, espaços específicos ou outros que rompam com os já consagrados em que suas produções ganharão o status de obra de arte.

Evidente que, para além disso, temos necessidade da arte para nos completarmos como seres humanos; e cada tempo histórico produz seus artistas; além disso, vivemos em um mundo dividido e todas essas reflexões – bem como o próprio entendimento da produção artística – precisa ser considerado em nosso tempo, pois ela, a arte, tem também uma função a cumprir. “A razão de ser da arte nunca permanece inteiramente a mesma. A função da arte, numa sociedade em que a luta de classes se aguça, difere, em muitos aspectos, da função original da arte. No entanto, a despeito das situações sociais diferentes, há alguma coisa na arte que expressa uma verdade permanente. E é essa coisa que nos possibilita [...] comovermo-nos com as pinturas pré-históricas das cavernas e com antiquíssimas canções” (Fischer, 1973, p. 16)

 

Referências

BARBOSA, Ana Mae. As mutações do conceito e da prática. In: BARBOSA, Ana Mae (Org.). Inquietações no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002, p. 13-25.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas v. 1. 8ª ed. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo; Brasiliense, 2012.

COLI, Jorge. O que é arte? São Paulo: Círculo do Livro, s.d. (Coleção Primeiros Passos volume 7)

DANTO, Arthur. O mundo da arte. Trad.: Rodrigo Duarte. In: IANINI, Gilson; GARCIA, Douglas; FREITAS, Romero (Orgs.). Artefilosofia: antologia de textos estéticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 26-41.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

HAAR, Michel. A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras. Trad.: Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Difel, 2000.

KONDER, Leandro. As artes da palavra: elementos para uma poética marxista. São Paulo: Boitempo, 2005.

PATRIOTA, Rosangela. O teatro e o historiador: interlocuções entre linguagem artística e pesquisa histórica. In: RAMOS, Alcides Freire; PEIXOTO, Fernando; PATRIOTA, Rasangela (Orgs.). A história invade a cena. São Paulo: Hucitec, 2008.



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; mestre em Artes pela mesma instituição; graduado em História pela Universidade Cruzeiro do Sul; integrante do Teatro Ruante; articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua; autor do livro Teatro de Rua – Identidade, Território (Giostri, 2020) e coorganizador de Paky`Op: experiências, travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).

domingo, 10 de dezembro de 2023

Moções aprovadas na 6ª Conferência Estadual de Cultura

MOÇÃO DE APOIO À MANIFESTAÇÃO DA CULTURA POPULAR DO SAMBA, DAS ESCOLAS DE SAMBA E CARNAVAL DE RUA DO ESTADO DE RONDÔNIA

 


Nós, delegados e delegadas presentes a 6ª Conferência Estadual de Cultura, destacamos a relevância histórica e cultural do Samba, das Escolas de Samba, dos blocos carnavalescos, bem como as manifestações momescas com toda sua genuinidade brasileira.  Destacamos o legado dos agentes culturais que dedicaram sua vida à construção do Carnaval e ao desenvolvimento das Agremiações de Escola de Samba. Destacamos também que a manifestação do samba em Rondônia remonta ao período inicial do século passado e acompanhou a formação de cidades como Porto Velho.  Destacamos também a existência da GRES Os Diplomatas que neste ano completou 65 anos de existência e tem como fundador o Mestre Bainha, ainda vivo e signatário desta história.  Destacamos a existência de cerca de 10 Agremiações, distribuídas em 3 cidades rondonienses, sendo que em Porto Velho somos 8 escolas. Destacamos que no período recente fomos impedidos de realizar nossa principal manifestação que é o Desfile das Escolas de Samba por um período de 5 anos.  Destacamos que neste ano de 2023 tivemos a grata satisfação de eleger o Mestre Bainha como o Bamba do Samba do Brasil, maior título conferido às personalidades do mundo do samba.  Destacamos que historicamente o Carnaval tem sido tratado com desprezo, pois frente às demais manifestação culturais de igual grandeza, somos os menos valorizados e que recebemos a menor fatia dos investimentos públicos.  Somos constantemente descaracterizados, menosprezados e sobretudo esquecidos. Destacamos também que em 2024 haverá sim, o desfile das Escolas de Samba em Rondônia.  E, repudiamos as atitudes dos gestores da cultura em não reconhecer a relevância do Carnaval e das Escolas de Samba para a cultura popular, para a economia local na geração de tributos, de empregos, de renda e, sobretudo, para a manutenção desta atividade.

 

MOÇÃO DE REPÚDIO


Nós, os Delegados e delegadas presentes à 6ª Conferencia Estadual de Cultura do Estado de Rondônia, repudiamos as atitudes da Prefeitura de Porto Velho com relação a não abertura da Praça da Estrada de Ferro Madeira Mamoré (EFMM), após longo período de reformas. Destacamos que a Praça está reformada e pronta para visitação, no entanto a empresa ganhadora do contrato de gestão não providenciou sua abertura. Repudiamos a forma como vem sendo tratada a questão do artesanato e da Feira do Sol com relação ao retorno à Praça da EFMM, sabemos que o Artesanato está sendo tratado com desprezo e desrespeito, pois em momento algum fomos chamados para alguma tratativa. Desta forma, exigimos a imediata abertura da Praça bem como o retorno imediato das atividades do artesanato nas suas dependências.

 

Federação Rondoniense do Artesanato

Plenária Final 6ª Conferência Estadual de Cultura

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Um novo ciclo de conferências da cultura

 

                                                                                                           Adailtom Alves Teixeira[1]

            Foi dada a largada para um novo ciclo de conferências na área da cultura em todo o país, algumas prefeituras até já realizaram, em Porto Velho/RO, ocorre nos dias 27 e 28 de outubro de 2023; depois virão as conferências estaduais e, por fim, a IV Conferência Nacional de Cultura entre 04 a 08 de março de 2024, em Brasília. Tais processos tomam como tema “Democracia e direito à cultura”, divididos em seis eixos de debate.

            Com vistas a uma rápida discussão, tomarei aqui o Eixo I: Institucionalização, Marcos Legais e Sistema Nacional de Cultura, que tem como centralidade os mecanismos de participação social. Penso que erros do passado, somados à tragédia dos últimos seis anos (2017-2022) fez com que os organizadores vissem como fundante tal participação social. Se ocorrerá e como ocorrerá, bem como se tais processos serão realmente democráticos, são outras questões que precisarão ser avaliados posteriormente.

            A perspectiva é que se avance para uma política de Estado e não de governo como tem sido recorrente em nossa história e para isso é fundante o processo democrático, faz-se necessário radicalizar a participação social. O objetivo de uma política efetiva é urgente e necessário para a estabilidade do setor, sempre com pires não mão e em descontinuidade, tendo seu órgão máximo, o Minc, inclusive extinto. O processo de institucionalização, por sua vez, não pode ser desassociado dos valores democráticos, como apregoa o documento de orientação do Eixo I. Nesse sentido, recuperam as proposições de cidadania cultural de Marilena Chaui, quando ela esteve à frente da gestão pública de cultura na cidade de São Paulo, quando Luiz Erundina era prefeita (1989-1992).

As proposições da pensadora, publicadas posteriormente no livro Cidadania cultural (2006), elenca como prioridades “garantir direitos existentes, criar novos direitos e desmontar privilégios” (CHAUI, 2006, p. 65). Para tanto, recusa três concepções de cultura muito comum nas estruturas do Estado brasileiro em seus diversos entes: “a da cultura oficial produzida pelo Estado, a populista e a neoliberal” (2006, p. 67). Ou seja, procura viabilizar a cultura como direito de cidadãos e cidadãs “e como trabalho de criação” (2006, p. 67).

Desse modo, a cultura não pode ser determinada pelos dirigentes, nem servir a um processo populista que tende a ver a cultura pelo alto, isto é, apropria-se e depois devolve “a verdadeira cultura” ao povo, e muito menos ser vista pelo olhar do mercado, definida pela indústria cultural e da política efêmera dos eventos. Chaui alerta ainda que o direito à cultura não pode ser confundido “com as figuras do consumidor e do contribuinte” (2006, p. 69). Direito à cultura é entendido da seguinte maneira:

- o direito de produzir cultura, seja pela apropriação dos meios culturais existentes, seja pela invenção de novos significados culturais;

- o direito de participar das decisões quanto ao fazer cultural;

- o direito de usufruir dos bens da cultura, criando locais e condições e acesso aos bens culturais para a população;

- o direito de estar informado sobre os serviços culturais e sobre a possibilidade de deles participar ou usufruir;

- o direito à formação cultural e artística pública e gratuita nas Escolas e Oficinas de Cultura do município;

- o direito à experimentação e à invenção do novo nas artes e nas humanidades;

- o direito a espaços para reflexão, debate e crítica;

- o direito à informação e à comunicação” (CHAUI, 2006. P. 70-1).

 

Para mais discussões acerca desse ponto, além da própria obra de Chaui (2006), recomendo dois textos curtos, aqui e aqui.

No que tange aos Marcos legais, a Constituição Federal (CF) dão régua e compasso, tendo muitos artigos que tratam da cultura, desde aqueles dos direitos fundamentais, os que tratam da família, da organização do Estado, da comunicação social, dentre outros, mas são, sobretudo os Artigos 215 e 216 que asseguram os direitos na área da cultura. Entretanto, precisamos avançar e o ciclo das conferências são os espaços para isso (mas não só). O Sistema Nacional de Cultura (SNC), por exemplo, garantido pelo Artigo 216-A da CF, desde 2012, ainda não foi regulamentado e tramita (ou adormece em alguma gaveta) do Congresso Brasileiro, trata-se do PL9474/18. Ainda nessa direção, parece ter havido um salto importante para a consolidação do SNC, posto que com a Lei Emergencial Paulo Gustavo houve adesão de 98,6% dos municípios e 100% dos estados, entes que compõem o pacto federativo e terão um ano para criarem o chamado CPF da cultura (Conselho, Plano e Fundo). Tais elementos são fundantes em uma política estruturante.

Porém, como ocorrerá o financiamento público e orçamentário entre os entes que compõem o pacto federativo? Daí a importância das discussões nas conferências, com vistas a avançarmos na discussão e implementação das políticas públicas de cultura, que conta com um outro aporte legal significativo, o Marco Regulatório da Cultura (PL3905/21), este também tramita no Congresso. Daí a pergunta norteadora do Eixo I: “Quais ações são necessárias para fortalecer e garantir a continuidade das políticas culturais?” Penso que, no caso de Porto Velho/RO, além de pleitearmos recursos próprios da prefeitura, para que não se fique apenas na dependência dos futuros recursos federais, cabe a luta pela criação de programas específicos, com dotação orçamentária própria, a exemplo de como há em muitas cidades brasileiras. Outro ponto importante é defendermos o "Custo Amazônico" em todas as conferências: municipal, estadual e nacional.

Ernst Fischer (1973), ao buscar responder porque a arte tem sido, é e será sempre necessária na existência dos seres humanos, lembra que nossa existência como ser não basta, todas/os/es temos a necessidade de totalidade, isto é, ansiamos por unir, por meio da arte, o nosso eu limitado a uma existência humana coletiva, ou seja, tornar social a nossa individualidade. Em seus termos:

O desejo do homem [mulheres e dos demais que não se identificam dentro da binariedade] de se desenvolver e completar indica que ele [ela] é mais do que um indivíduo. Sente que só pode atingir a plenitude se se apoderar das experiências alheias que potencialmente lhe concernem, que poderiam ser dele [dela]. E o que um homem [mulher, não binário] sente como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humanidade, como um todo, é capaz. A arte é o meio indispensável para essa união dos indivíduos com o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a circulação de experiências e ideias (FISCHER, 1973, p. 13).

 

            A arte nos permite vivenciar sem vivermos propriamente aquela experiência (ou, em outros termos, vivermos uma experiência de um outro tipo), permite imaginar novos mundos, nos permite conhecer melhor a humanidade e a nós mesmos, posto que é conhecimento e, a partir daí, possibilita que nos reinventemos. O papel dos entes públicos (municípios, estados e União), respeitando o que já prever a CF, é estreitar a ponte entre artistas e os fruidores (demais cidadãos e cidadãs), ao mesmo tempo que permite que fruidores possam também criar, experimentar, se expressarem também por meio da arte, para tanto a construção de políticas públicas de cultura é fundamental e estas devem ser construídas com a plena participação social. Que os ciclos das conferências sejam proveitosos para toda a sociedade. Evoé!

 

Bibliografia citada

CHAUI, Marilena. Cidadania cultural. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Doutorando em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; mestre em Artes pela mesma instituição; integrante do Teatro Ruante; articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua; autor do livro Teatro de Rua – Identidade, Território (Giostri, 2020) e co-organizador de Paky`Op: experiências, travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Nota de repúdio à violência sofrida pela Bailarina da Praça no dia 7 de setembro de 2023

 Nota de repúdio à violência sofrida pela Bailarina da Praça no dia 7 de setembro de 2023


A Academia Rondoniense de Letras, Ciências e Artes (ARL) vem manifestar o seu repúdio em decorrência da atuação de agentes da Polícia Militar com a ativista cultural de Porto Velho, Sra. Elielza Ramos Freire (Bailarina da Praça), 53 anos, mãe e avó, durante o Desfile de Comemorações do dia 7 de Setembro de 2023.

 O desfile cívico-militar é um ato cultural no Brasil, mostrando o encontro de culturas, o que não condiz com atitudes que afrontam à liberdade de expressão e o direito à manifestação pacífica, na qual a “Bailarina da Praça” desejava expressar sua gratidão à população de Porto Velho pela ajuda recebida nos últimos dias.

A nossa PM tem no seu quadro pessoas capacitadas para conciliar  e conduzir situações adversas a suas programações de uma maneira mais digna, neste caso as apresentações alegres e pacíficas da Bailarina da Praça as quais são conhecidas de todos. 

Ela já foi aplaudida de pé inúmeras  vezes em apresentações teatrais e musicais da nossa cidade.

É inaceitável qualquer tipo de violência contra a mulher, o que afronta as garantias constitucionais e o Estado Democrático de Direito.

Nossa solidariedade à Bailarina da Praça e nosso repúdio a qualquer forma de discriminação aos cidadãos deste país, sobretudo àqueles que atuam na promoção da cultura, das artes, ciências e letras em Rondônia.


Porto Velho, 7 de setembro de 2023.


Angella Schilling

Presidente da Academia Rondoniense de Letras (ARL)


Nota: O ocorrido pode ser visto no seguinte link: https://www.instagram.com/reel/Cw5lQ_6LKXa/?igshid=MzRlODBiNWFlZA%3D%3D 

domingo, 13 de agosto de 2023

V Seminário Amazônico de Artes Cênicas

 V SEMINÁRIO AMAZÔNICO DE ARTES CÊNICAS

Reunidos na Praça das Três Caixas D`Água em Porto Velho, no dia 10 de junho, na etapa Rondônia e na Praça Nauro Machado (Centro Histórico), no dia 12 de agosto de 2023, na etapa Maranhão, os coletivos que compuseram a programação do XIV Festival Amazônia Encena na Rua, debateram os rumos das políticas públicas na Amazônia e no Brasil. Após um preâmbulo de Chicão Santos, a palavra rodou, tomando como base a última Carta Pororoca escrita em Belém/PA (2022).

Constatou-se avanços em relação às exigências solicitadas naquele momento, como a retomada do Ministério da Cultura (Minc), a derrubada dos vetos às leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc2.

Na Etapa Maranhã, o foco da discussão foi a retomada do Ministério da Cultura e o avanço da execução da Lei Paulo Gustavo, com a pulverização dos recursos entre todos os entes federados o que contempla a regionalização dos recursos pleiteados pelos coletivos.

Outros pontos debatidos, que precisam ser observados pelos órgãos e gestores de cultura, com a vigilância dos fazedores de arte da floresta, destacamos abaixo:

1.            Que o sistema Minc respeite as decisões tomadas nas Conferências, em especial da IIIª Conferência Nacional de Cultura (2013), que colocou o CUSTO AMAZÔNICO como uma das prioridades para a elaboração da política nacional para as artes, constatado, para citar como exemplo, os editais da retomada lançados pela FUNARTE, onde não aparece o destaque para o CUSTO AMAZÔNICO;

2.            Em relação a regulamentação da Lei Paulo Gustavo, em especial a última Instrução Normativa (IN) nº5/2023 e o decreto nº 11.525/2023, que dispõe sobre as regras e procedimentos para implementação das ações afirmativas e medidas de acessibilidade, nós somos plenamente favoráveis as medidas, mas, diante das realidades enfrentadas tanto pelos gestores, como pelos fazedores de arte na Amazônia, em determinados aspectos inviabiliza a execução dos recursos. O legislador não observou especificidades regionais, a exemplo das comunidades e coletivos que vivem ao longo dos rios na Amazônia, além dessas dificuldades, temos ainda uma realidade onde não temos tecnologias e profissionais para atender estas exigências impostas. Diante de decisões já tomadas pela Secretaria da Economia Criativa e Fomento que flexibilizou os planos de acessibilidade para Lei Rouanet, solicitamos o mesmo tratamento para a LPG, considerando seu caráter emergencial;

3.            Acompanhamento da implantação dos sistemas de cultura nos estados e municípios, o chamado CPF da cultura (Conselhos, Planos e Fundos), que passam a valer a partir da Lei Aldir Blanc 2;

4.            Que a Funarte, em seus editais possa dar uma atenção especial às mostras e festivais de todo o Brasil, bem como criar ações que possam integrar os países latino-americanos em seus aspectos artísticos;

5.            A importância de voltarmos a debater as sedes públicas (em logradores públicos) pelos coletivos que fazem teatro de rua. Que o poder público e a sociedade assumam a responsabilidade de tornar estes espaços acessíveis e democráticos para o pleno exercício da cidadania cultural. Criando mecanismos e orientações aos entes em relação a desburocratização e o acesso livre conforme estabelece Constituição Federal;

6.            Que os grandes empreendimentos instalados e a serem instalados na Amazônia, a exemplo das hidrelétricas implantadas na região amazônica tenha planos de compensação, e que parte destes recursos sejam destinados aos coletivos de artes cênicas da floresta;

7.            É fundamental que se tenha concursos públicos para órgão gestores de cultura em todos os níveis, de maneira a estruturar tais instituições com pessoal qualificado;

8.            Na mesma direção, faz-se urgente que os estados contratem pessoal para realizar busca ativa juntos aos fazedores artísticos, sobretudo aqueles que historicamente tem ficado apartados dos editais públicos;

9.            Ainda em âmbito federal, faz-se necessário recursos para estruturar os programas, em especial o Cultura Viva, bem como a ampliação da parceria com os entes federados, visando ampliar os Pontos de Cultura;

10.         Devido ao desmonte da cultura nos últimos anos, faz-se necessário criação de uma linha de crédito e/ou um programa econômico, que possa distribuir crédito aos coletivos culturais no sentido, por exemplo, do financiamento de veículos para seu transporte, reestruturação das sedes, dentre outas ações;

11.         A criação de uma espécie de cadastro de mérito e/ou selo de mérito, que crie uma tabela de pontos, levando em consideração os projetos realizados, a sua prestação de contas, os anos de existência, bem como o território no qual está inserido o coletivo;

12.         Que os estados e os municípios tenham recursos próprios para seus fundos, visando a atividade fim e qualifique a utilização desses recursos, de modo a não dependerem apenas dos recursos federais.

13.         Em relação aos escritórios do MINC nos estados, somos plenamente favoráveis, mas é necessário observar o perfil, a qualificação, o poder de mobilização do nomeado, e fazer escuta da comunidade cultural, sobre pena de não cumprir a função.

 

Centro Histórico de São Luiz - MA, em 12 de Agosto de 2023.


ANEXO

4ª CARTA POROROCA

 

Reuniram-se os articuladores da RBTR – Rede Brasileira de Teatro de rua (AC, AM, AP, DF, MA, MG, MT, PA, RJ, RO, RR, SC, SP, TO) em Belém, Pará, de 5 a 12 de Junho de 2022, no IV Seminário Amazônico de Teatro de Rua e XIII Amazônia Encena na Rua (Edição Pará), juntamente com a Rede Teatro da Floresta.

Os participantes do IV Seminário Amazônico de Teatro de Rua buscam organizar o enfrentamento aos vetos das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, articulados pelo governo federal instaurado e a construção de uma política pública fundamentada em leis estruturais que fixam o financiamento da cultura, tornando permanente e não apenas conjuntural a responsabilidade de repassar recursos para o setor cultural. Dentro deste contexto, considerar o custo amazônico na distribuição do financiamento, proporcionando condições de equidade econômica para o fazer cultural/teatral nas diversas regiões do Brasil. 

Entendem que as leis emergenciais não suprem as demandas urgentes, uma vez que não se adequam à realidade da cultura tradicional, desse modo reivindicam a articulação por parte dos parlamentares em função de estratégias que tornem os mecanismos burocráticos acessíveis. Queremos o enfrentamento da lógica empresarial na regulamentação da cultura para que as e os profissionais não fiquem à mercê do mercado capitalista, recebendo migalhas. Lógica esta que incita o individualismo e enfraquece a rede de artistas.

Diante da retomada das atividades presenciais, queremos fortalecer a importância das e dos fazedores de teatro que propulsionam uma cadeia produtiva ao trazer vida às ruas ao passo que valoriza a memória popular. São essas e esses artistas que apresentam-se compondo o Teatro da Floresta, que associados a RBTR – Rede Brasileira de Teatro de Rua – criaram neste evento de Teatro de Rua, um fenômeno singular: o quarto POROROCA (encontro) de duas grandes redes de teatro do Brasil.

Juntos, nós teatreiros deste Brasil da diversidade, queremos reivindicar ações efetivas com o objetivo de construir políticas públicas para o teatro, mais democráticas e inclusivas, tais como:

• Que os parlamentares mobilizem seus pares para a derrubada dos vetos das Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2 e se posicionem articulando o enfrentamento ao desmonte promovido pelas práticas da política fascista;

• Que os editais sejam regionalizados e sejam criadas comissões igualmente regionalizadas e indicadas pelos artistas, bem como a criação de mecanismos de acompanhamento e assessoramento dos artistas-trabalhadores e grupos de Teatro da Floresta;

• Que dentro desta compreensão de regionalização, possa a Rede Teatro da Floresta, com transparência de critérios, gerir com autonomia a distribuição da verba destinada aos editais do setor para Amazônica Legal.

• Que o MINC seja restituído e crie três representações do próprio Ministério, com escritórios da FUNARTE, iniciando desta forma a expansão pela região norte na perspectiva de abrangência de todo território brasileiro.

• Que seja reconhecido o custo amazônico e haja a criação de programas específicos que contemplem, na perspectiva de uma reparação: a produção, circulação, formação, registro e memória, manutenção, pesquisa, intercâmbio, vivência, mostras e encontros do Teatro da Floresta.

• Reformulação da lei de licitações, com a criação do Estatuto da Cultura, com normas específicas para as atividades artísticas e culturais, que contemple nas alterações, a extinção de todas e quaisquer formas de contraprestação financeira, considerando que o trabalho artístico de rua já cumpre função social.

• A extinção da Lei Rouanet e de quaisquer mecanismos de financiamentos que utilizem a renúncia fiscal, por compreendermos que a utilização da verba pública deve se dar através do financiamento direto do Estado, por meios de programas e editais em formas de prêmios elaborados pelos segmentos organizados da sociedade;

• Criação de um programa interministerial (exemplo: MINC/MINISTÉRIO DAS CIDADES) em parceria com os Estados e Municípios para a construção e/ou reforma de espaços públicos (praças, parques e outros), adequando-os às necessidades dos artistas e trabalhadores das Artes de Rua, além da inclusão imediata destes espaços no programa de construção dos equipamentos culturais do PAC.

• Que os espaços públicos (ruas, praças, parques, entre outros), sejam considerados equipamentos culturais e assim contemplados na elaboração de editais públicos, Plano Nacional de Cultura e outros;

• Garantir a aplicação dos recursos obtidos através da extração do petróleo na região pré-sal, a extração de minérios e usinas hidroelétricas da Amazônia, para o Teatro da Floresta.

• A criação de um programa nacional de ocupação de propriedades públicas ociosas, para sede do trabalho e pesquisa dos grupos de teatro de rua;

• A extinção de todas e quaisquer cobranças de taxas, bem como a desburocratização para as apresentações de artistas-trabalhadores, grupos de rua e afins, garantindo assim, o direito de ir e vir e a livre expressão artística, em conformidade com o artigo 5º da Constituição Federal Brasileira;

• Que os editais para as artes sejam transformados em leis para garantia de sua continuidade, levando em consideração as especificidades de cada região (ex: custo amazônico);

• Que quaisquer editais públicos ou privados tenham maior aporte de verbas e que seja publicada a lista de projetos inscritos, contemplados e suplentes, e a divulgação de parecer técnico de todos os projetos avaliados, para garantir a lisura do processo;

• Promover o maior intercâmbio entre o Brasil e demais países da América Latina, através de programas específicos (exemplo: países que integram a Amazônia internacional);

• Exigimos o apoio financeiro da FUNARTE aos Encontros Regionais, Nacionais e Internacionais, no valor equivalente ao montante que é repassado àqueles realizados pela Associação dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil.

• Propomos como indicativo a inclusão nas Universidades, instituições de ensino e escolas técnicas, matérias referentes ao estudo do Teatro de Rua, da Cultura Popular Brasileira e do teatro da América Latina, bem como estas IES garantam o registro e a constituição histórica da diversidade cênica do Teatro da Floresta e obrigatoriamente um estudo do imaginário da Amazônia.

• A valorização e financiamento das publicações e estudos de materiais específicos sobre teatro de rua e manifestações tradicionais amazônicas, inclusive as contemporâneas, respeitando sua forma de saber enquanto registro.

• Que o MINC, uma vez restituído, realize uma reforma na diretoria de Artes Cênicas da FUNARTE, transformando as atuais coordenações em diretorias setoriais de Teatro, Circo e Dança.

• Inclusão dos programas setoriais nos mecanismos do Pro cultura;

 

O Teatro da Floresta constituiu esta carta tendo como apoio as cartas desenvolvidas nos encontros presenciais da Rede Brasileira de Teatro de Rua, endossando que o Teatro de Rua é um símbolo de resistência artística, comunicador e gerador de sentido, além de ser propositor de novas razões no uso dos espaços públicos abertos. Levando em consideração as especificidades e a diversidade da região e do povo amazônico, com suas vozes, experiências e saberes.

 

Reunidos nestes 7 dias, ficou acordado que os próximos encontros da Rede Teatro da Floresta serão sediados nos festivais de caráter nacional e internacional da região amazônica.

 

11 de Junho de 2022

Praça da República, Belém / PA

Rede Teatro da Floresta