Adailtom Alves Teixeira[1]
A arte é uma das possibilidades de conhecermos melhor a nós mesmos como
humanidade, bem como a realidade a nossa volta. Por meio de uma obra, que nos
desperta sentimentos, se pode relacionar, comparar tais sentimentos a outros e
de outras pessoas. Porém, para um maior efeito, isso ocorre quando a arte está
conectada com seu tempo histórico, com o mundo à sua volta ou quando capta
aspectos fundantes de nossa humanidade. “O conhecimento jamais esgota a
realidade, mas a ciência e a arte, mesmo não sendo oniscientes e onipresentes,
têm desvendado aspectos importantes do ser” (Konder, 2005, p. 60).
Não é por acaso que a arte é fundamental na constituição de identidades,
seja dos sujeitos, seja dos territórios. Ainda que para este último apenas a
produção artística não baste, posto que a identidade de um lugar se compõe de diversos
elementos culturais, dos quais a arte é apenas um dos componentes. Sujeitos e
lugares, por sua vez, estão conectados, como afirma Ana Mae Barbosa:
“Relembrando Fanon, eu diria que a Arte capacita um homem ou uma mulher a não
ser um estranho em seu meio ambiente, nem estrangeiro em seu próprio país. Ela
supera o estado de despersonalização, inserindo o indivíduo no lugar ao qual
pertence, reforçando e ampliando seus lugares no mundo” (2002, p. 18).
Pode-se afirmar que, quando olhamos esse campo de conhecimento de modo
amplo, nenhum grupo social vive sem arte, posto que o ser humano tem
necessidade de beleza – ainda que o belo seja apenas uma das categorias
estéticas das artes – e de expressão. À primeira vista tal afirmação pode
escorregar para certo idealismo, porém tal expressão a que chamo de necessidade
de beleza, é a possibilidade de dar contornos, formas sentidos às coisas em
diálogo com seu tempo; toda obra é material. “O artista, embora pense com suas
mãos, crie com seu corpo, surge em uma época, isto é, em uma história e em um
mundo, cuja palavra, primeiro poética, mítica, sempre estabeleceu antes os
contornos e os limites” (Haar, 2000, p. 94).
Por isso,
responder o que é arte se torna algo difícil, já que não é unívoca. Melhor que
dá uma resposta única é tentarmos continuar a burilar tal universo. Uma
palavra, ao ser manipulada pelo poeta, pode assumir outros sentidos; uma pedra
desbastada pode ganhar formas diversas, um objeto retirado de seu contexto
original e posto em outro, pode ganhar um novo status, o de obra de arte.
As pessoas em
sociedade, não só criam os objetos de arte, como também criam as condições para
que esses objetos sejam vistos como tal. O nosso ancestral que pintava nas
cavernas, é certo que não fazia arte naquele momento, tal produção tinha uma
função mágico-religiosa, mas com o tempo passamos a vê as pinturas das cavernas
como obras de artes: arte rupestre.
A arte se
reinventa, visando expressar questões humanas, questionando a si, a sociedade e
a seu tempo. O artista cria, o fruidor, o público, recria ao dar sua
interpretação. Os especialistas elevam ao status
de arte, aquilo que não foi pensado inicialmente como arte, como, por exemplo,
uma pia batismal do século XVII. Nesse sentido, como distinguir obras de artes
de outros objetos?
O papel da arte
também não é o mesmo em todas as épocas e lugares, ela muda sempre; os gostos
mudam e mudam as formas de nos relacionarmos com a arte. Mas quem determina que
algo, que certos objetos são ou não uma obra de arte, ou aquilo que antes não
era passe a ser visto como um objeto artístico?
Como afirma o
filósofo Arthur Danto: “O que afinal de contas, faz a diferença entre uma caixa
de Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brillo é uma certa
teoria da arte. É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de recair
na condição do objeto real que ela é [...]. É claro que, sem a teoria, é
improvável que alguém veja isso como arte” (2015, p. 37). Ora, então sem o
teórico não existe arte? Bem, para Danto, quando o artista retira um elemento
da realidade, modifica-o ou lhe dá novos significados, necessita de certa
teoria para que de algum modo tais objetos se plasmem como obras de arte. O que
demonstra quão complexo é o mundo artístico. Desse modo, poderíamos pensar em
Mestre Vitalino (1909-1963), para além de seu imenso talento, seus “brinquedos”
vendidos na feira de Caruaru teriam se tornado uma arte desejada, caso não fosse
o fato de ganhar novos espaços? Como a exposição em que participou em João
Pessoa a convite do artista plástico Augusto Rodrigues em 1947? Depois, o artista expôs
no Masp em 1949, de onde alçou voos internacionais, ao compor uma exposição
brasileira na Suíça em 1955.
Tal complexidade é também abordada por
Jorge Coli, sobretudo no que tange aos ditos espaços consagrados e que
consagram; tais lugares teriam, em tese, a capacidade “Para decidir o que é ou
não arte”. Dentro de tais elementos, ao juntar teoria e espaços de legitimação
cultural, o autor afirma que nossa cultura possui instrumentos específicos para
isso. “Um deles, essencial, é o discurso sobre o objeto artístico, em que
reconhecemos competência e autoridade. Esse discurso é o que profere o crítico,
o historiador da arte, o perito, o conservador do museu. São eles que conferem
o estatuto de arte a um objeto. Nossa cultura também prevê locais específicos
onde a arte pode manifestar-se, quer dizer, locais que também dão estatuto de arte
a um objeto” (Coli, s.d., p. 13). Mas, pode-se perguntar: quem são as pessoas,
gestores, instituições que representam tais espaços? Qual o contexto que
determinada obra é valorada? Porque umas são valorizadas em detrimento de
outras?
Rosangela Patriota
(2008), ao revisitar seu histórico de pesquisas acerca do teatro, afirma que a
“memória histórica”, isto é, a produção e reflexão de historiadores, cria certo
ordenamento das experiências artísticas, daí a importância do diálogo crítico
com a história do teatro. Como exemplo a autora afirma que “[...] noções como moderno, político, universal, clássico,
engajado, entre outras” (2008, p. 36), vão estruturando valores e
hierarquias de artistas e obras. Apesar de, para a autora se ter avançado nas
pesquisas acerca do teatro Brasil a fora, além da impactante contribuição de
suas produções, sobretudo na década de 1970 – foco da autora –, as reflexões
“[...] foram profundamente impregnadas pelos temas e ideias das cenas paulista
e carioca” (Patriota, 2008, p. 38).
Assim, podemos
concluir que, se por um lado, muitos dos objetos que apreciamos como obra de
arte, sem as teorias, sem os críticos, sem os espaços consagrados ao mundo das
artes, provavelmente jamais seriam vistos como arte. Por outro lado, é
importante sabermos que quando estamos diante de uma obra ou artista dito
“consagrado”, tanto um como o outro, são mais do que o objeto e a pessoa,
acabam por englobar tudo o que foi produzido/escrito sobre a obra e sobre o
artista. Por isso mesmo, não significa dizer que aquelas obras que estão fora
desse rol necessariamente são destituídas de valores e importância; significa,
tão somente, que algumas galgaram um lugar que outras não chegaram, graças a um
aparato que depende de outras redes e “especialistas”.
Para finalizar com
Danto: “Qualquer que seja o predicado artisticamente relevante em virtude do
qual elas ganham seu acesso, o resto do mundo da arte se torna
proporcionalmente rico ao ter o predicado oposto disponível e aplicável a seus
membros” (2015, p. 41). Cabe ainda mencionar que, determinadas expressões
artísticas, têm sido persistentemente desprestigiadas, ignoradas, postas de
lado, que quando há reflexões sobre elas, são no sentido de desvalorizá-las,
por isso, faz-se necessário aguçar o olhar, ouvidos, demais sentidos e a razão,
analisando com cuidado tais hierarquias criadas; é preciso uma análise a
contrapelo, como nos ensina Walter Benjamin (2012).
Tal reflexão, como
já dito, não é unívoca e é apenas um passo inicial em um processo muito mais
amplo, mas pode-se concluir que a “consagração” de uma obra artística, implica
muitos/as sujeitos/as para além de seu/sua próprio/a criador/a. Inserido/a no
seu tempo histórico, com o qual, consciente ou inconscientemente o/a artista
lidará, ele/ela necessita também de toda uma rede que implica, além dos/as
fruidores/as, outros/as sujeitos/as, como os formadores para recepção da obra,
críticos/as que a debaterão, espaços específicos ou outros que rompam com os já
consagrados em que suas produções ganharão o status de obra de arte.
Evidente que, para
além disso, temos necessidade da arte para nos completarmos como seres humanos;
e cada tempo histórico produz seus artistas; além disso, vivemos em um mundo
dividido e todas essas reflexões – bem como o próprio entendimento da produção
artística – precisa ser considerado em nosso tempo, pois ela, a arte, tem
também uma função a cumprir. “A razão de ser da arte nunca permanece
inteiramente a mesma. A função da arte, numa sociedade em que a luta de classes
se aguça, difere, em muitos aspectos, da função original da arte. No entanto, a
despeito das situações sociais diferentes, há alguma coisa na arte que expressa
uma verdade permanente. E é essa coisa que nos possibilita [...] comovermo-nos
com as pinturas pré-históricas das cavernas e com antiquíssimas canções” (Fischer,
1973, p. 16)
Referências
BARBOSA, Ana Mae.
As mutações do conceito e da prática. In:
BARBOSA, Ana Mae (Org.). Inquietações
no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002, p. 13-25.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas v. 1. 8ª ed. Trad.:
Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo; Brasiliense, 2012.
COLI, Jorge. O que é arte? São Paulo: Círculo do
Livro, s.d. (Coleção Primeiros Passos volume 7)
DANTO, Arthur. O
mundo da arte. Trad.: Rodrigo Duarte. In:
IANINI, Gilson; GARCIA, Douglas; FREITAS, Romero (Orgs.). Artefilosofia: antologia de textos estéticos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015, p. 26-41.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Trad.:
Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
HAAR, Michel. A obra de arte: ensaio sobre a ontologia
das obras. Trad.: Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Difel, 2000.
KONDER, Leandro. As artes da palavra: elementos para uma
poética marxista. São Paulo: Boitempo, 2005.
PATRIOTA,
Rosangela. O teatro e o historiador: interlocuções entre linguagem artística e
pesquisa histórica. In: RAMOS,
Alcides Freire; PEIXOTO, Fernando; PATRIOTA, Rasangela (Orgs.). A história invade a cena. São Paulo: Hucitec,
2008.
[1]
Professor
do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Doutor em
Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; mestre em
Artes pela mesma instituição; graduado em História pela Universidade Cruzeiro
do Sul; integrante do Teatro Ruante; articulador e um dos fundadores da Rede
Brasileira de Teatro de Rua; autor do livro Teatro
de Rua – Identidade, Território (Giostri, 2020) e coorganizador de Paky`Op: experiências, travessias, práxis
cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).
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