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quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Arte: apontamentos iniciais para descortinar criações e armadilhas

 


Adailtom Alves Teixeira[1]

 

A arte é uma das possibilidades de conhecermos melhor a nós mesmos como humanidade, bem como a realidade a nossa volta. Por meio de uma obra, que nos desperta sentimentos, se pode relacionar, comparar tais sentimentos a outros e de outras pessoas. Porém, para um maior efeito, isso ocorre quando a arte está conectada com seu tempo histórico, com o mundo à sua volta ou quando capta aspectos fundantes de nossa humanidade. “O conhecimento jamais esgota a realidade, mas a ciência e a arte, mesmo não sendo oniscientes e onipresentes, têm desvendado aspectos importantes do ser” (Konder, 2005, p. 60).

Não é por acaso que a arte é fundamental na constituição de identidades, seja dos sujeitos, seja dos territórios. Ainda que para este último apenas a produção artística não baste, posto que a identidade de um lugar se compõe de diversos elementos culturais, dos quais a arte é apenas um dos componentes. Sujeitos e lugares, por sua vez, estão conectados, como afirma Ana Mae Barbosa: “Relembrando Fanon, eu diria que a Arte capacita um homem ou uma mulher a não ser um estranho em seu meio ambiente, nem estrangeiro em seu próprio país. Ela supera o estado de despersonalização, inserindo o indivíduo no lugar ao qual pertence, reforçando e ampliando seus lugares no mundo” (2002, p. 18).

Pode-se afirmar que, quando olhamos esse campo de conhecimento de modo amplo, nenhum grupo social vive sem arte, posto que o ser humano tem necessidade de beleza – ainda que o belo seja apenas uma das categorias estéticas das artes – e de expressão. À primeira vista tal afirmação pode escorregar para certo idealismo, porém tal expressão a que chamo de necessidade de beleza, é a possibilidade de dar contornos, formas sentidos às coisas em diálogo com seu tempo; toda obra é material. “O artista, embora pense com suas mãos, crie com seu corpo, surge em uma época, isto é, em uma história e em um mundo, cuja palavra, primeiro poética, mítica, sempre estabeleceu antes os contornos e os limites” (Haar, 2000, p. 94).

Por isso, responder o que é arte se torna algo difícil, já que não é unívoca. Melhor que dá uma resposta única é tentarmos continuar a burilar tal universo. Uma palavra, ao ser manipulada pelo poeta, pode assumir outros sentidos; uma pedra desbastada pode ganhar formas diversas, um objeto retirado de seu contexto original e posto em outro, pode ganhar um novo status, o de obra de arte.

As pessoas em sociedade, não só criam os objetos de arte, como também criam as condições para que esses objetos sejam vistos como tal. O nosso ancestral que pintava nas cavernas, é certo que não fazia arte naquele momento, tal produção tinha uma função mágico-religiosa, mas com o tempo passamos a vê as pinturas das cavernas como obras de artes: arte rupestre.

A arte se reinventa, visando expressar questões humanas, questionando a si, a sociedade e a seu tempo. O artista cria, o fruidor, o público, recria ao dar sua interpretação. Os especialistas elevam ao status de arte, aquilo que não foi pensado inicialmente como arte, como, por exemplo, uma pia batismal do século XVII. Nesse sentido, como distinguir obras de artes de outros objetos?

O papel da arte também não é o mesmo em todas as épocas e lugares, ela muda sempre; os gostos mudam e mudam as formas de nos relacionarmos com a arte. Mas quem determina que algo, que certos objetos são ou não uma obra de arte, ou aquilo que antes não era passe a ser visto como um objeto artístico?

Como afirma o filósofo Arthur Danto: “O que afinal de contas, faz a diferença entre uma caixa de Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brillo é uma certa teoria da arte. É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de recair na condição do objeto real que ela é [...]. É claro que, sem a teoria, é improvável que alguém veja isso como arte” (2015, p. 37). Ora, então sem o teórico não existe arte? Bem, para Danto, quando o artista retira um elemento da realidade, modifica-o ou lhe dá novos significados, necessita de certa teoria para que de algum modo tais objetos se plasmem como obras de arte. O que demonstra quão complexo é o mundo artístico. Desse modo, poderíamos pensar em Mestre Vitalino (1909-1963), para além de seu imenso talento, seus “brinquedos” vendidos na feira de Caruaru teriam se tornado uma arte desejada, caso não fosse o fato de ganhar novos espaços? Como a exposição em que participou em João Pessoa a convite do artista plástico Augusto Rodrigues em 1947? Depois, o artista expôs no Masp em 1949, de onde alçou voos internacionais, ao compor uma exposição brasileira na Suíça em 1955.

Tal complexidade é também abordada por Jorge Coli, sobretudo no que tange aos ditos espaços consagrados e que consagram; tais lugares teriam, em tese, a capacidade “Para decidir o que é ou não arte”. Dentro de tais elementos, ao juntar teoria e espaços de legitimação cultural, o autor afirma que nossa cultura possui instrumentos específicos para isso. “Um deles, essencial, é o discurso sobre o objeto artístico, em que reconhecemos competência e autoridade. Esse discurso é o que profere o crítico, o historiador da arte, o perito, o conservador do museu. São eles que conferem o estatuto de arte a um objeto. Nossa cultura também prevê locais específicos onde a arte pode manifestar-se, quer dizer, locais que também dão estatuto de arte a um objeto” (Coli, s.d., p. 13). Mas, pode-se perguntar: quem são as pessoas, gestores, instituições que representam tais espaços? Qual o contexto que determinada obra é valorada? Porque umas são valorizadas em detrimento de outras?

Rosangela Patriota (2008), ao revisitar seu histórico de pesquisas acerca do teatro, afirma que a “memória histórica”, isto é, a produção e reflexão de historiadores, cria certo ordenamento das experiências artísticas, daí a importância do diálogo crítico com a história do teatro. Como exemplo a autora afirma que “[...] noções como moderno, político, universal, clássico, engajado, entre outras” (2008, p. 36), vão estruturando valores e hierarquias de artistas e obras. Apesar de, para a autora se ter avançado nas pesquisas acerca do teatro Brasil a fora, além da impactante contribuição de suas produções, sobretudo na década de 1970 – foco da autora –, as reflexões “[...] foram profundamente impregnadas pelos temas e ideias das cenas paulista e carioca” (Patriota, 2008, p. 38). 

Assim, podemos concluir que, se por um lado, muitos dos objetos que apreciamos como obra de arte, sem as teorias, sem os críticos, sem os espaços consagrados ao mundo das artes, provavelmente jamais seriam vistos como arte. Por outro lado, é importante sabermos que quando estamos diante de uma obra ou artista dito “consagrado”, tanto um como o outro, são mais do que o objeto e a pessoa, acabam por englobar tudo o que foi produzido/escrito sobre a obra e sobre o artista. Por isso mesmo, não significa dizer que aquelas obras que estão fora desse rol necessariamente são destituídas de valores e importância; significa, tão somente, que algumas galgaram um lugar que outras não chegaram, graças a um aparato que depende de outras redes e “especialistas”.

Para finalizar com Danto: “Qualquer que seja o predicado artisticamente relevante em virtude do qual elas ganham seu acesso, o resto do mundo da arte se torna proporcionalmente rico ao ter o predicado oposto disponível e aplicável a seus membros” (2015, p. 41). Cabe ainda mencionar que, determinadas expressões artísticas, têm sido persistentemente desprestigiadas, ignoradas, postas de lado, que quando há reflexões sobre elas, são no sentido de desvalorizá-las, por isso, faz-se necessário aguçar o olhar, ouvidos, demais sentidos e a razão, analisando com cuidado tais hierarquias criadas; é preciso uma análise a contrapelo, como nos ensina Walter Benjamin (2012).

Tal reflexão, como já dito, não é unívoca e é apenas um passo inicial em um processo muito mais amplo, mas pode-se concluir que a “consagração” de uma obra artística, implica muitos/as sujeitos/as para além de seu/sua próprio/a criador/a. Inserido/a no seu tempo histórico, com o qual, consciente ou inconscientemente o/a artista lidará, ele/ela necessita também de toda uma rede que implica, além dos/as fruidores/as, outros/as sujeitos/as, como os formadores para recepção da obra, críticos/as que a debaterão, espaços específicos ou outros que rompam com os já consagrados em que suas produções ganharão o status de obra de arte.

Evidente que, para além disso, temos necessidade da arte para nos completarmos como seres humanos; e cada tempo histórico produz seus artistas; além disso, vivemos em um mundo dividido e todas essas reflexões – bem como o próprio entendimento da produção artística – precisa ser considerado em nosso tempo, pois ela, a arte, tem também uma função a cumprir. “A razão de ser da arte nunca permanece inteiramente a mesma. A função da arte, numa sociedade em que a luta de classes se aguça, difere, em muitos aspectos, da função original da arte. No entanto, a despeito das situações sociais diferentes, há alguma coisa na arte que expressa uma verdade permanente. E é essa coisa que nos possibilita [...] comovermo-nos com as pinturas pré-históricas das cavernas e com antiquíssimas canções” (Fischer, 1973, p. 16)

 

Referências

BARBOSA, Ana Mae. As mutações do conceito e da prática. In: BARBOSA, Ana Mae (Org.). Inquietações no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002, p. 13-25.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas v. 1. 8ª ed. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo; Brasiliense, 2012.

COLI, Jorge. O que é arte? São Paulo: Círculo do Livro, s.d. (Coleção Primeiros Passos volume 7)

DANTO, Arthur. O mundo da arte. Trad.: Rodrigo Duarte. In: IANINI, Gilson; GARCIA, Douglas; FREITAS, Romero (Orgs.). Artefilosofia: antologia de textos estéticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 26-41.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

HAAR, Michel. A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras. Trad.: Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Difel, 2000.

KONDER, Leandro. As artes da palavra: elementos para uma poética marxista. São Paulo: Boitempo, 2005.

PATRIOTA, Rosangela. O teatro e o historiador: interlocuções entre linguagem artística e pesquisa histórica. In: RAMOS, Alcides Freire; PEIXOTO, Fernando; PATRIOTA, Rasangela (Orgs.). A história invade a cena. São Paulo: Hucitec, 2008.



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; mestre em Artes pela mesma instituição; graduado em História pela Universidade Cruzeiro do Sul; integrante do Teatro Ruante; articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua; autor do livro Teatro de Rua – Identidade, Território (Giostri, 2020) e coorganizador de Paky`Op: experiências, travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).

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