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domingo, 5 de outubro de 2025

A ilusão de uma arte não alinhada

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Volta e meia, como o dia que inevitavelmente sucede à noite, ressurge o debate (ou a ilusão) de uma arte que não seja política, como se isso fosse possível. A reivindicação por uma arte “neutra”, “pura” ou “não engajada” é, em si, uma tomada de posição ideológica, pois o alinhamento ou engajamento é mais profundo do que muitas vezes se imagina. Todo ser humano nasce em um mundo culturalmente estruturado, em um tecido simbólico e social já dado, que antecede e condiciona nossas escolhas. À medida que ganhamos consciência, podemos deliberar e transformar, mas mesmo essas decisões se dão dentro dos limites do mundo conhecido, das linguagens e valores herdados. Assim, os pressupostos idealistas da arte — essa ideia de uma arte “autônoma”, “acima” das contradições históricas — persistem e atormentam os desavisados desde, pelo menos, a Antiguidade. No Ocidente, essa tensão tem raízes profundas: basta lembrar de Platão, que em A República expulsou os poetas de sua cidade ideal, por considerá-los perigosos à ordem racional do Estado.

Apesar dessa legitimação filosófica inicial, e de muitas outras que viriam depois, a condenação platônica ressurgirá diversas vezes ao longo da história ocidental, ora sob a forma de censura direta, ora como desconfiança moral em relação à arte e aos artistas, frequentemente vistos como figuras dissolutas ou subversivas. Como lembra Haar,

[...] na Inglaterra o puritanismo conseguiu, em 1642, o fechamento dos teatros. Assim também temos que lembrar que a instituição da censura é extremamente antiga e persistente: ela já existia desde Atenas, foi exercida pela Igreja e mais tarde organizada por Richelieu como aparelho do Estado (Haar, 2000, p. 31).

Desse modo, a perseguição às artes assume múltiplas faces: a censura explícita, o controle econômico, a desvalorização simbólica ou mesmo o discurso aparentemente inofensivo de que “arte e política não se misturam”. No fundo, trata-se sempre de uma tentativa de desarticular o potencial crítico da arte e de neutralizar seu poder de imaginar outros mundos possíveis.

Entretanto, se somos seres sociais e, portanto, seres políticos por definição, não há arte que não seja política. Raymond Williams explica com clareza essa condição de pertencimento estrutural:

[...] nascemos em uma situação social, em relações sociais, em uma família, que juntas formaram o que, elevando o nível de abstração, poderíamos ver como sendo nós mesmos enquanto indivíduos. Muito dessa formação ocorre antes de termos consciência de qualquer individualidade. De fato, a consciência da individualidade é frequentemente a de todos esses elementos de nossa formação, mesmo que nunca possa ser completada. Os alinhamentos são certamente profundos. São nossa maneira normal de viver no mundo, nossa maneira normal de ver o mundo (Williams, 2015, p. 127).

E Williams aprofunda ainda mais essa reflexão, tomando o caso específico do escritor:

[...] para um escritor, há algo ainda mais específico: ele nasceu em uma língua; seu próprio meio de comunicação é algo que aprendeu como se fosse natural, embora, sem dúvida, saiba que existem outras línguas muito diferentes. [...] Portanto, nascido em uma situação social, com todas as suas perspectivas específicas, e em uma língua, o escritor está alinhado desde o início (Williams, 2015, p. 128).

Ora, não é apenas o escritor que nasce sob uma língua, na verdade todo artista, mesmo aquele cuja arte não se expressa por palavras, está imerso em um universo simbólico e ideológico. Como já afirmara Bakhtin/Volochínov (2009), todo signo é ideológico: ao nos expressarmos, refletimos ou refratamos a realidade social em que estamos inseridos. Nesse sentido, como bem observam Carboni e Maestri, a língua “[...] é palco privilegiado da luta de classes, expressão e registro dos valores e sentimentos contraditórios de exploradores e explorados” (2012, p. 12).

Essa concepção é fundamental para compreendermos que não há neutralidade possível: toda criação, mesmo aquela que reivindica afastamento do “mundo real”, traz consigo um ponto de vista, um recorte de classe, de gênero, de território, de tempo. O mito da arte “pura” é uma das formas mais sofisticadas de alinhamento com o status quo.

O ator e diretor Orson Welles, em um breve texto sobre o teatro, recorda o quanto a arte ganha sentido quando se liga à vida concreta: ao referir-se à invasão da Áustria por Hitler, afirmou que quando a arte se conecta com a vida cotidiana “[...] então vale a pena fazer peças, compor canções para elas, produzi-las e nelas atuar. No minuto em que perdemos isso de vista, nós nos tornamos necromantes ou encantadores” (Welles, 1998, p. 139).

Evidentemente que isso não significa reduzir a arte a um mero discurso político. A arte exige forma, técnica, invenção estética. Pois, como lembra Bertolt Brecht (2005), quanto mais poética a arte for, mais potente será politicamente, sobretudo se revelar o mundo como algo transformável. A arte, afinal, não é reflexo passivo da realidade, mas uma força ativa que desestabiliza certezas e amplia o campo do possível.

Assim, insistir na neutralidade é, paradoxalmente, uma forma de alinhamento. Toda arte é política. A diferença está apenas em saber a favor de quem e de quê lado ela se move.

Referências

BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 13ª ed. Trad.: Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. 2ª ed. Trad.: Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

CARBONI, Florence; MAESTRI, Mário. A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

HAAR, Michel. A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras. Trad.: Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Difel, 2000.

WELLES, Orson. O teatro e a Frente Popular. In: PRAGA – Estudos Marxistas. N. 5, maio/1998. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 138-139.

WILLIAMS, Raymond. Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. Trad.: Nair Fonseca e João Alexandre Peschanski. São Paulo: EdUnesp, 2015.



[1] Professor do Departamento Acadêmico de Artes da Universidade Federal de Rondônia (UNIR); mestre e doutor em Artes (Área de Concentração Artes Cênicas) pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); ator, diretor, dramaturgo; integrante do Teatro Ruante; e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Audiência Pública de Cultura*

AUDIÊNCIA PÚBLICA DE CULTURA

Adailtom Alves Teixeira

Cumprimentos.

A Constituição de um país é um arcabouço político jurídico que orienta leis, normas e, por consequência, também as políticas públicas. Antes, porém, de se constituir em um corpo jurídico, ela é um pacto que a sociedade estabelece entre si.

O Brasil, no pacto que originou a CF de 1988, colocou a CULTURA como direito fundamental, pois ela está mencionada do Art. 5º, Dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Quanto às disposições específicas sobre a Cultura, dois outros artigos constitucionais, 215 e 216, no qual afirma que o Estado deve “garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais”, mais, garantir o “acesso às fontes da cultura nacional”, tendo, portanto, a obrigação de “apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

Ora, é justamente por meio das políticas públicas que esse apoio, incentivo, valorização e acesso podem ser garantidos. Se é direito de todos e dever do Estado, o caminho é via política pública de cultura. Afinal, é por meio de tais políticas que se transformam os direitos em práticas concretas, ao distribuir recursos e oportunidades. Em resumo: a função da política pública é mediar a relação entre Estado e sociedade, transformando demandas sociais em ações que melhorem a vida coletiva.

Nesse sentido, essa casa de leis é fundamental. Seja por ser representante do povo, seja por criar as leis, seja porque vota o orçamento do estado, seja porque fiscaliza o Executivo. E é preciso dizer que, infelizmente, o Legislativo não tem dado a atenção que merece o campo cultural. Vale mencionar que a cadeia produtiva da cultura e das economias criativas representam mais de 3% do PIB brasileiro, além de impactar diretamente em outros setores, para citar apenas um: a indústria do turismo.

Algumas pesquisas demonstram o alto retorno econômico para o estado quando investe-se em cultura. A FGV realizou uma pesquisa sobre a Lei Rouanet e constatou que de cada real investido, há um retorno de R$ 1,59; o governo do RJ em pesquisa acerca da Lei Paulo Gustavo contatou que de cada real investido teve um retorno de R$ 6,51; já o Estado de São Paulo, de cada um real, teve retorno de R$ 1,67 (O Globo). Ou seja, as pesquisas demonstram quão positivo economicamente é o investimento em cultura. Poderia citar também o impacto positivo na segurança, na saúde e outras áreas, mas o tempo é curto.

Senhor(a) presidente (a), é urgente que essa casa dê atenção ao Fundo Estadual de Desenvolvimento da Cultura do Estado de Rondônia – FEDEC, que vem enfrentando problemas desde sua criação, bem como dê atenção às políticas nacionais, como a PNAB – Política Nacional Aldir Blanc, que faz com que chegue recursos significativos ao estado, mas não vem sendo cumprido a contento, seja porque não executam totalmente, seja porque executam fora do prazo.

Cabe mencionar que das políticas emergenciais, Lei Aldir Blanc e Paulo Gustavo, também não foram executados todos os recursos, devolvendo dinheiro à União. Quem perde, é sobretudo a população rondoniense, pois os artistas, é importante que se diga, assim como a execução de uma política pública, eles são o meio para que a população acesse as manifestações culturais aqui produzidas. Os/as artistas, os/as produtores ao terem um projeto contemplado em um edital não ficam com o recurso para si – é obvio mas precisa ser dito –, ele EXECUTA UM PROJETO que faz com o direito básico de acesso garantido pela Constituição se cumpra, chegue até os/as cidadãos. Além de impactar economicamente diversas pessoas e o próprio PIB do estado.

Amir Haddad, um homem de teatro com mais de 60 anos de profissão, costumar afirmar que, “os militares fazem a pátria, os políticos fazem um país, mas só os artistas fazem a nação”. Isso porque a cultura constitui a identidade de um povo e sua arte é cimento fundamental dessa construção. A arte sempre chega primeiro.

Para encerrar, é preciso nos mirarmos em bons exemplos de políticas públicas de cultura em outras partes do Brasil. Quando olhamos, por exemplo, a potência do audiovisual pernambucano ou a efervescência do teatro paulistano, não podemos esquecer que por trás de ambos há uma sólida política pública. Que Rondônia possa seguir essa boa caminhada, que com certeza passa e precisará das decisões dos parlamentares dessa casa. Penso que a população de Rondônia merece acessar a produção de artistas tão diversos e potentes como o que temos no estado, para tanto, há que haver políticas públicas de cultura efetivas para o setor cultural.

Muito obrigado!


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* Disponibilizo aqui a fala realizada durante a Audiência, que ocorreu no dia 10/09/2025 às 14h na Assembleia Legislativa de Rondônia a pedido do Conselho Estadual de Política Cultural (CEPC) em articulação com o Gabinete da Deputada Cláudia de Jesus.