Adailtom
Alves Teixeira[1]
O
desmonte das poucas e raras políticas públicas de cultura, somados aos ataques
constantes que os fazedores de arte vêm sofrendo, pelo menos desde 2016, são
impressionantes. Os artistas foram eleitos inimigos públicos por uma rede de
ódio, direcionados a partir do alto escalão do poder. Somado a tudo isso, uma
pandemia que já dura mais de dois anos. Os artistas foram os primeiros a
pararem suas atividades, sendo os últimos a retornarem, tendo que, nesse
ínterim, adaptar-se as novas plataformas digitais e linguagens distintas da que
praticavam. É certo que muitos/as ficaram pelo caminho, desistiram, devido a
dureza da sobrevivência e os estragos ainda não sabemos por completo. Um viva a
todas e todos que até aqui sobreviveram!
Estamos
retomando ao presencial, mas, devido aos propagadores do ódio que estão
espalhados por toda nossa sociedade, não será uma retomada fácil. Temos
acompanhado casos de ofensas e de incompreensão do papel da arte em toda e
qualquer sociedade. Para citar dois casos próximos e recentes, procurando
interferir no fazer e na forma como as demais pessoas podem ter ou não acesso a
arte, dois cidadãos ditos “de bem”, procuraram interferir, sobretudo junto às
autoridades constituídas, leia-se secretários e prefeitos, no Festival Matias
de Teatro de Rua, realizado no Acre pela Cia Visse Versa, em outubro de 2021 e,
mais recentemente, abril de 2022, em uma apresentação do Mamulengo da Folia no
interior de São Paulo. A tentativa de censura é, sobretudo, clamando por uma
arte isenta; desconhecem o fato de que toda arte é política. Como afirmava
Aristóteles, ninguém escapa a esta arte maior chamada política. Viver em
sociedade é um ato político. No entanto, como vivemos em um país onde ainda bem
poucas pessoas fruiem arte e entendem quase nada do papel dos e das artistas em
uma sociedade, é provável que acompanharemos muitas agressões e barbaridades
nessa retomada. Precisamos avançar. Somos uma sociedade autoritária e violenta,
mas precisamos ajudar a instaurar uma cultura de paz, por meio do nosso fazer
artístico.
A ocupação dos espaços é tema fertilizador
de uma cultura de paz, com suas rodas de conversa, caminhadas, passeatas,
enfim, ações nas ruas, como elementos formadores de cidadania. Junto com isso,
a valorização do diálogo e escutas em conversas públicas, e a importância das
políticas públicas de Cultura de Paz nas redes culturais e nos contextos
comunitários e sócio culturais de vulnerabilidade (FARIA; GARCIA; SOUZA, 2013,
p. 10).
Teremos
que nos desdobrarmos em muitas ações, ainda que estejamos em frangalhos, pois
somos fundamentais na reconstrução dos afetos em nosso país. A cultura de paz
pode soar contraditória em um momento histórico com tanto ódio a nos dividir,
mas nos parece que este é o caminho mais assertivo a ser percorrido. A não
violência deve estar em todos os nossos atos, isso não significa baixarmos a
cabeça e aceitarmos os absurdos e violências, pelo contrário, no entanto, nosso
esforço deve ser o diálogo, mesmo aqueles mais difíceis que surgirão à nossa
frente. Faz-se necessário o diálogo também com outras áreas do saber, é
fundante, e nesse aspecto a educação é, sem dúvida uma das mais férteis – não à
toa também negligenciada e sob ataque. Nessa retomada, todo diálogo, apoio e
parcerias, serão bem-vindas.
O
diálogo a partir de nossas comunidades, nossos territórios, são o ponto de
partida. Vamos deixar de lado a crença popular de que santo de casa não faz
milagre, afinal é aí que estar o nosso pertencimento. E, a partir do local, de
baixo para cima, ampliarmos nossas redes. Sejamos articuladores ativos, para
que as redes comecem a balançar e embalados por elas, fiquemos mais fortes.
Somos importantes na virada que o Brasil precisa dá e a ação a partir de nossas
comunidades, ampliando-as por meio das redes construídas e/ou fortalecidas, fará
muita diferença nesse processo de mudança, que sabemos não será imediato, mas
precisamos avançar. O caminho se faz no caminhar.
O
diálogo que proponho nos pede um exercício de atenção constante para não
mergulharmos em certo etnocentrismo, no qual venhamos a nos caracterizarmos
como donos da verdade. O diálogo precisa ser honesto e verdadeiro. Precisamos nos
abrir para o diferente, para o/a outro/a: “A nossa riqueza reside na
diversidade de várias faces, que devem ser preservadas através de conflitos e
conciliações, na busca de uma sociedade mais justa. É a experiência da
alteridade que nos leva a nos reconhecermos uns nos outros (GARCIA, 2013, p.
36). A arte é nosso passaporte para a conversa inicial, mas precisará de outras
ações, outras formas de diálogo: espaços de trocas e conversas, possibilidades
para que o público experimente nossas linguagens artísticas e, assim, irmos nos
aproximando, enquanto eles e elas compreendem mais o nosso fazer e nosso papel,
para que juntas/os compreendamos e avancemos como cidadãos interessados em
nosso país. O poeta e doutor em antropologia, Pedro Benjamin Garcia, citando um
pensador polonês, L. Kolakowski, afirma que “a arte é um modo de perdoar a
maldade e o caos do mundo”, mas perdoar não é justificar o mal ou se
reconciliar com ele, mas sim, como complementa o citado pensador:
Perdoar tem outro sentido. A arte
organiza as percepções com respeito ao mundo do mau e do caótico, introduzindo
a compreensão da vida de maneira tal que a presença do mau e do caos se
converte na possibilidade de minha iniciativa com respeito ao mundo, que leva
em si, mesmo o seu próprio bem e o seu próprio mal. Para que possa ser assim, a
arte deve recobrir no mundo o que sua aparência não proporciona, ou seja, o
encanto secreto de sua feiura, a deformação oculta de sua graça, o ridículo de
sua elevação, a pobreza do luxo e o custo da pobreza; em uma palavra: deve
descobrir todas as fibras secretas sufocadas pelas qualidades empíricas e que
convertem em partículas de nosso fracasso ou de nosso orgulho (L. Kolakowski apud GARCIA, 2013, p. 37).
Sejamos
férteis, revelemos “a feiura que vivemos”. Vamos encher o mundo com nossa arte,
ampliando nossas redes para frutificarmos ainda mais nossos diálogos e, assim,
ajudarmos a superar este momento histórico tão terrível pelo qual todas e todos
passamos. Se o diálogo fracassar, a violência grassará. Vamos olhar o mundo com
espanto e convidar nossos semelhantes a se espantarem conosco, sem perder
jamais nossa ludicidade, nossa alegria! Como nos lembra o nosso grande
educador, Paulo Freire, ninguém ensina sem aprender, ninguém aprende sem
ensinar. Nessa ciranda maior que é a vida, vamos, então, aprender e ensinar;
ensinar e aprender com o/a outro/a. Vamos conviver. Não será fácil, mas parece
que a encruzilhada a que chegamos nos convida à ação. Como nos lembra outro
educador, Luiz Rufino, na nota introdutória de seu Pedagogia das encruzilhadas,
A encruzilhada é a boca do mundo, é
saber praticado nas margens por inúmeros seres que fazem tecnologias e poéticas
de espantar a escassez abrindo caminhos. Exu, como dono da encruzilhada, é
primado ético que diz acerca de tudo que existe e pode vir a ser. (...) A sua
face brincante, transgressora, pregadora de peças, é o contraponto necessário a
esse latifúndio de desigualdade e mentira (2019, p. 5).
Que
Exu abra nossos caminhos, que toda ginga e malandragem de nossos ancestrais nos
inspire e nossas artes frutifiquem em férteis diálogos afetuosos, e juntos e
juntas com a população, possamos ajudar a parir um novo Brasil.
Bibliografia
FARIA, Hamilton; GARCIA,
Pedro; SOUZA, Valmir de. Apresentação. In:
FARIA, Hamilton; GARCIA, Pedro; SOUZA, Valmir de (Orgs.). Cultura viva, políticas públicas e cultura de paz. São Paulo:
Instituto Pólis, 2013.
GARCIA, Pedro Benjamin.
Interculturalidade e cultura de paz. In:
FARIA, Hamilton; GARCIA, Pedro; SOUZA, Valmir de (Orgs.). Cultura viva, políticas públicas e cultura de paz. São Paulo:
Instituto Pólis, 2013.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de
Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
[1]
É professor do Departamento Acadêmico de Artes da Universidade
Federal de Rondônia (Unir) no Curso Licenciatura em Teatro; Doutorando em Artes
no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); Mestre em
Artes pela mesma instituição; Graduação em Licenciatura em História pela
Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul). Ator e diretor teatral com 26 anos de
experiência, dedicados sobretudo à pesquisa e à prática em teatro de rua;
integrante do “Grupo de Pesquisa Práxis Épico-Populares em Perspectivas
Críticas: documentação de experimentos teatrais” (CNPq) e do “PAKY`OP Laboratório
de Pesquisa em Teatro e Transculturalidade: práxis, reflexões e poéticas
pedagógicas”, (CNPq) no qual coordena a linha de pesquisa Memórias da Cena
Amazônica. É articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de
Rua; foi um dos fundadores do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo; é membro
fundador do Teatro Ruante. Em 2020 publicou pela Giostri Editora o livro Teatro de Rua - identidade,
território.
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