Adailtom Alves Teixeira[1]
A valorização moral do
trabalho como virtude não é uma noção atemporal ou natural, mas uma construção
histórica que ganha força especialmente com a ética protestante calvinista.
Essa perspectiva, que associa a prosperidade à graça divina e ao esforço individual,
foi fundamental para justificar as desigualdades sociais ao longo da
modernidade. Assim, os ricos seriam “trabalhadores virtuosos” e os pobres,
vítimas da própria “preguiça” ou falha moral. Tal lógica é reciclada nos tempos
atuais pela ideia de meritocracia e pela teologia da prosperidade, que insiste
em afirmar que o sucesso é apenas fruto da dedicação pessoal, ignorando por
completo as estruturas sociais que moldam as oportunidades.
Contudo, nas últimas décadas,
com o avanço das tecnologias da informação e da comunicação, o capitalismo
sofreu mutações profundas. A aceleração do tempo histórico e a compressão do
espaço – fenômenos bem descritos por autores como David Harvey (1996) – fizeram
emergir uma nova configuração social, marcada por serviços, virtualidade e
imaterialidade da produção. A chamada sociedade de conhecimento, ou sociedade
em rede, como define Manuel Castells, revela um deslocamento do eixo produtivo
clássico para formas de trabalho cada vez mais simbólicas e cognitivas: “O que
pensamos e como pensamos é expresso em bens serviços, produção material e
intelectual, sejam alimentos, moradia, sistema de transporte e comunicação,
mísseis, saúde, educação ou imagens” (Castells, 2011, p. 69).
Neste novo regime, as big
techs tornam-se protagonistas. Empresas como Google, Amazon, Meta e outras
dominam mercados, ditam comportamentos e capturam, por meio de algoritmos,
nossos dados e nossas subjetividades. Para Marilena Chaui, essa nova
configuração social se estrutura na “articulação entre ciência, tecnologia e
setor empresarial” (2025, p. 119). A ideologia que a sustenta é a da
competência, onde o valor do indivíduo é medido por sua capacidade de
adaptação, produtividade e visibilidade.
A virtualidade deixou de ser
apenas potência – como era concebida na filosofia – e passou a ser realidade
concreta e dominante. Vivemos em um presente contínuo, sem memória do passado
ou projeto de futuro. Nesse cenário, o sentimento de existência está atrelado à
visibilidade nas redes: “O sentimento de que existir é ser visto, dando origem
a uma subjetividade narcisista que, como já explicara Freud, é uma
subjetividade depressiva” (Chaui, 2025, p. 121).
A consequência é uma explosão
de doenças psíquicas, um mal-estar generalizado da civilização digital.
Estamos, muitas vezes, trabalhando sem perceber – e sem remuneração –
alimentando com nosso tempo, atenção e dados os sistemas que geram valor para
poucos. As redes sociais se tornaram novas formas de exploração do trabalho, ao
mesmo tempo em que promovem fragmentação e alienação.
Diante dessa realidade, a
velha estrutura de classes persiste e se aprofunda, ainda que obscurecida pela
ideologia. A desigualdade é visível a olho nu, mas a ideologia dominante
esconde sua origem estrutural e tenta explicá-la como fruto de desvios individuais.
A ideologia distingue, assim, o de
facto e o de jure: de fato há divisões sociais; de direito, a
sociedade é uma, indivisa, homogênea e harmoniosa, de sorte que as divisões são
meramente empíricas e suas causas devem ser encontradas em maus sujeitos
sociais (facções, rebeldes, bandidos, preguiçosos, raças inferiores, caipiras,
migrantes, imigrantes etc.) (Chaui, 2025, p. 125).
O resultado é a busca
constante por inimigos internos ou externos, culpados pelo "fracasso"
coletivo. Quando não se encontram inimigos fora, o olhar se volta contra si
mesmo, num autojulgamento cruel: cada um se torna responsável pela sua própria
derrota, reforçando o isolamento e a culpa.
A crítica de Chaui revela como
a ideologia neoliberal opera por deslocamento: “A lógica da circulação das
mercadorias, no lugar da lógica da produção; a lógica da informação e da
comunicação, no lugar da lógica do trabalho; e a lógica da
satisfação-insatisfação dos desejos individuais na sua intimidade, no lugar da
lógica da luta de classes” (Chaui, 2025, p. 126).
Esse processo reforça a ideia
de que não há alternativa ao sistema atual, mesmo diante de sua evidente
falência civilizatória. Estamos, como já se disse, em uma fase histórica em que
o velho mundo apodrece, mas o novo ainda não nasceu. A contradição, contudo,
insiste em se manifestar. Apesar da ideologia buscar apagar a luta de classes,
ela ressurge em manifestações, em greves, em rebeliões urbanas e também em
movimentos difusos nas redes sociais.
Como na canção popular, “a
vida vem em ondas”, tal onda, ainda que seja algo que vem e passa, deixa marcas.
A onda do momento é o “nós contra eles” e o “Somos 99%” (uma releitura do Occupy
Wall Street?) são expressões simbólicas da luta de classes que se manifesta
dentro do próprio campo das big techs – afinal esse território é do
capital, mas depende do uso diário dos/as trabalhadores/as. É preciso ter
clareza de que: “A luta de classes não é um conflito, e sim uma contradição
interna ao capitalismo entre duas classes que se definem uma pela negação da
outra” (Chaui, 2025, p. 130).
A radicalização da
desigualdade no Brasil torna essa contradição ainda mais evidente. De um lado,
uma elite econômica concentrada no Congresso, formada por representantes do
agronegócio, do sistema financeiro e de setores religiosos fundamentalistas. De
outro, uma população exausta, precarizada, empurrada para a informalidade e
convencida de que deve ser empreendedora de si mesma. A política neoliberal de
Estado mínimo para os pobres e Estado máximo para os ricos – com isenções,
subsídios e proteção jurídica – gerou uma explosão de insatisfação.
Mesmo com a crise das
esquerdas, incapazes por ora de apresentar um projeto alternativo convincente,
a realidade econômica bateu mais forte que o discurso dos coaches e dos
televangelistas, adeptos da teologia da prosperidade. A fantasia da
meritocracia não se sustenta diante da fome, do desemprego, da violência
estrutural e da ausência de perspectivas reais para a maioria da população,
especialmente a mais jovem.
Em tempos como o nosso, a
lucidez crítica é não só um exercício de pensamento, mas uma forma de
resistência. O primeiro passo é ver além das aparências e reconhecer que,
apesar de todas as máscaras, o sistema continua sendo o mesmo: produtor de
desigualdades e destruidor de futuros. Que os movimentos saiam das redes, do
virtual, e ganhem o real, as ruas.
Referências
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6ª
ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
CHAUI, Marilena. Ideologia:
uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2025.
HARVEY, David. Condição
pós-moderna. 6ª ed. São Paulo: Loyola,
1996.
[1] Professor da Universidade Federal de
Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade
Estadual Paulista; graduado em História.