Adailtom Alves Teixeira[1]
Foi
dada a largada para um novo ciclo de conferências na área da cultura em todo o
país, algumas prefeituras até já realizaram, em Porto Velho/RO, ocorre nos dias
27 e 28 de outubro de 2023; depois virão as conferências estaduais e, por fim,
a IV Conferência Nacional de Cultura entre 04 a 08 de março de 2024, em
Brasília. Tais processos tomam como tema “Democracia e direito à cultura”,
divididos em seis eixos de debate.
Com
vistas a uma rápida discussão, tomarei aqui o Eixo I: Institucionalização, Marcos Legais e Sistema Nacional de Cultura,
que tem como centralidade os mecanismos de participação social. Penso que erros
do passado, somados à tragédia dos últimos seis anos (2017-2022) fez com que os
organizadores vissem como fundante tal participação social. Se ocorrerá e como
ocorrerá, bem como se tais processos serão realmente democráticos, são outras
questões que precisarão ser avaliados posteriormente.
A
perspectiva é que se avance para uma política de Estado e não de governo como
tem sido recorrente em nossa história e para isso é fundante o processo
democrático, faz-se necessário radicalizar a participação social. O objetivo de
uma política efetiva é urgente e necessário para a estabilidade do setor,
sempre com pires não mão e em descontinuidade, tendo seu órgão máximo, o Minc,
inclusive extinto. O processo de institucionalização, por sua vez, não pode ser
desassociado dos valores democráticos, como apregoa o documento de orientação
do Eixo I. Nesse sentido, recuperam as proposições de cidadania cultural de Marilena Chaui, quando ela esteve à frente da
gestão pública de cultura na cidade de São Paulo, quando Luiz Erundina era
prefeita (1989-1992).
As proposições da pensadora,
publicadas posteriormente no livro Cidadania
cultural (2006), elenca como prioridades “garantir direitos existentes,
criar novos direitos e desmontar privilégios” (CHAUI, 2006, p. 65). Para tanto,
recusa três concepções de cultura muito comum nas estruturas do Estado
brasileiro em seus diversos entes: “a da cultura oficial produzida pelo Estado,
a populista e a neoliberal” (2006, p. 67). Ou seja, procura viabilizar a
cultura como direito de cidadãos e cidadãs “e como trabalho de criação” (2006,
p. 67).
Desse modo, a cultura não pode
ser determinada pelos dirigentes, nem servir a um processo populista que tende
a ver a cultura pelo alto, isto é, apropria-se e depois devolve “a verdadeira
cultura” ao povo, e muito menos ser vista pelo olhar do mercado, definida pela
indústria cultural e da política efêmera dos eventos. Chaui alerta ainda que o
direito à cultura não pode ser confundido “com as figuras do consumidor e do
contribuinte” (2006, p. 69). Direito à cultura é entendido da seguinte maneira:
- o direito de produzir cultura, seja
pela apropriação dos meios culturais existentes, seja pela invenção de novos
significados culturais;
- o direito de participar das decisões
quanto ao fazer cultural;
- o direito de usufruir dos bens da
cultura, criando locais e condições e acesso aos bens culturais para a
população;
- o direito de estar informado sobre os
serviços culturais e sobre a possibilidade de deles participar ou usufruir;
- o direito à formação cultural e artística
pública e gratuita nas Escolas e Oficinas de Cultura do município;
- o direito à experimentação e à
invenção do novo nas artes e nas humanidades;
- o direito a espaços para reflexão,
debate e crítica;
- o direito à informação e à comunicação”
(CHAUI, 2006. P. 70-1).
Para mais discussões acerca
desse ponto, além da própria obra de Chaui (2006), recomendo dois textos curtos,
aqui e aqui.
No que tange aos Marcos
legais, a Constituição Federal (CF) dão régua e compasso, tendo muitos artigos
que tratam da cultura, desde aqueles dos direitos fundamentais, os que tratam
da família, da organização do Estado, da comunicação social, dentre outros, mas
são, sobretudo os Artigos 215 e 216 que asseguram os direitos na área da
cultura. Entretanto, precisamos avançar e o ciclo das conferências são os
espaços para isso (mas não só). O Sistema Nacional de Cultura (SNC), por exemplo,
garantido pelo Artigo 216-A da CF, desde 2012, ainda não foi regulamentado e
tramita (ou adormece em alguma gaveta) do Congresso Brasileiro, trata-se do
PL9474/18. Ainda nessa direção, parece ter havido um salto importante para a
consolidação do SNC, posto que com a Lei Emergencial Paulo Gustavo houve adesão
de 98,6% dos municípios e 100% dos estados, entes que compõem o pacto
federativo e terão um ano para criarem o chamado CPF da cultura (Conselho,
Plano e Fundo). Tais elementos são fundantes em uma política estruturante.
Porém, como ocorrerá o
financiamento público e orçamentário entre os entes que compõem o pacto
federativo? Daí a importância das discussões nas conferências, com vistas a
avançarmos na discussão e implementação das políticas públicas de cultura, que
conta com um outro aporte legal significativo, o Marco Regulatório da Cultura
(PL3905/21), este também tramita no Congresso. Daí a pergunta norteadora do
Eixo I: “Quais ações são necessárias para fortalecer e garantir a continuidade
das políticas culturais?” Penso que, no caso de Porto Velho/RO, além de pleitearmos
recursos próprios da prefeitura, para que não se fique apenas na dependência
dos futuros recursos federais, cabe a luta pela criação de programas
específicos, com dotação orçamentária própria, a exemplo de como há em muitas cidades
brasileiras. Outro ponto importante é defendermos o "Custo Amazônico" em todas as conferências: municipal, estadual e nacional.
Ernst Fischer (1973), ao
buscar responder porque a arte tem sido, é e será sempre necessária na
existência dos seres humanos, lembra que nossa existência como ser não basta,
todas/os/es temos a necessidade de totalidade, isto é, ansiamos por unir, por
meio da arte, o nosso eu limitado a
uma existência humana coletiva, ou seja, tornar social a nossa individualidade.
Em seus termos:
O desejo do homem [mulheres e dos demais
que não se identificam dentro da binariedade] de se desenvolver e completar
indica que ele [ela] é mais do que um indivíduo. Sente que só pode atingir a
plenitude se se apoderar das experiências alheias que potencialmente lhe
concernem, que poderiam ser dele [dela]. E o que um homem [mulher, não binário]
sente como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humanidade, como um
todo, é capaz. A arte é o meio indispensável para essa união dos indivíduos com
o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a
circulação de experiências e ideias (FISCHER, 1973, p. 13).
A
arte nos permite vivenciar sem vivermos propriamente aquela experiência (ou, em
outros termos, vivermos uma experiência de um outro tipo), permite imaginar
novos mundos, nos permite conhecer melhor a humanidade e a nós mesmos, posto
que é conhecimento e, a partir daí, possibilita que nos reinventemos. O papel
dos entes públicos (municípios, estados e União), respeitando o que já prever a
CF, é estreitar a ponte entre artistas e os fruidores (demais cidadãos e
cidadãs), ao mesmo tempo que permite que fruidores possam também criar, experimentar,
se expressarem também por meio da arte, para tanto a construção de políticas
públicas de cultura é fundamental e estas devem ser construídas com a plena
participação social. Que os ciclos das conferências sejam proveitosos para toda
a sociedade. Evoé!
Bibliografia citada
CHAUI,
Marilena. Cidadania cultural. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.
FISCHER,
Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed.
Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
[1] Professor do Curso Licenciatura em
Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Doutorando em Artes pelo Instituto
de Artes da Universidade Estadual Paulista; mestre em Artes pela mesma
instituição; integrante do Teatro Ruante; articulador e um dos fundadores da
Rede Brasileira de Teatro de Rua; autor do livro Teatro de Rua – Identidade,
Território (Giostri, 2020) e co-organizador de Paky`Op: experiências,
travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).